sexta-feira, 30 de março de 2012

O Livro dos Mil Provérbios




“Nem pela linhagem, nem pela riqueza estás tão honrado quanto pelos bons costumes”
 – Raimundo Lúlio (1232-1316)

Conselhos sobre Deus, príncipes, súditos, parentes, mulheres, escudeiros, companhia, vizinho, amigo, inimigo, justiça, prudência, fortaleza, temperança, fé, esperança, caridade, verdade, contrição, consciência, penitência, confissão, satisfação, santidade, abstinência, humildade, piedade, devoção, oração, paciência, consolação, obediência, lealdade, largueza, perseverança, cortesia, honra, vida, morte, avareza, glutonia, luxúria, orgulho, ociosidade, inveja, ira, falar, riqueza, pobreza, diligência, intenção.

Quantos pitacos vindos de uma pessoa só!

Normalmente os conselhos vêm de pessoas próximas de nós, que desinteressadamente nos querem bem e que têm muita experiência de vida para compartilhar. Ou vêm simplesmente de chatos intrometidos que não querem nos ver tendo o prazer de arriscar. E aí aprendemos ou pelo amor, ou pela dor, mas sempre se aprende, e os ensinamentos ficam, a sabedoria aumenta. Observação, aprendizado e sabedoria são materiais fundamentais para bons conselhos, que com o passar do tempo tomam a forma de provérbios, ou aforismos. Provérbios nada mais são do que conselhos, só que ditos de outra maneira. De modo reto, direto e definitivo, ora com bom humor, ora com sarcasmo, mas que atravessam os séculos, porque são justos e verdadeiros.

O Livro dos Mil Provérbios, de Lúlio, traz bem mais que opiniões e advertências de um beato medieval, que à primeira vista pode parecer moralista demais. Mas traz uma série de pensamentos que povos de todos os cantos do mundo têm incutidos em sua cultura, e que são usados para lembrar a humanidade que ela tem praticamente nada mais que a obrigação de seguir o caminho do bem e de ficar se policiando para não cometer (ainda mais) besteiras. É o tipo de livro para se ter sempre por perto e aberto aleatoriamente, pois onde quer que o abramos, haverá ali um bom alerta ou um bom alento.

O mestre catalão escreveu e teceu teorias como um doido, e esses mil provérbios são apenas um resumo, uma síntese dos ensinamentos de suas 343 obras; palavras que vêm sendo publicadas, estudadas e pensadas desde o século XIV até os dias de hoje.

Nascido na Ilha de Maiorca em 1232, Ramon Lllull iniciou sua carreira intelectual no reinado de Jaime II, no século XIII, servindo-lhe como preceptor e senescal (uma espécie de superintendente). Na corte, ele recorria sempre à poesia trovadoresca para fazer galenteios às damas da alta nobreza. Passou um tempo escrevendo cantos amorosos até que um evento, no mínimo curioso, mudou sua vida completamente. Numa noite de 1263, enquanto se atinha a seus escritos, Lúlio deu de cara com uma aparição de Cristo crucificado, visão que se repetiu outras cinco vezes até o escritor tivesse a iniciativa de estabelecer três metas para a sua vida: se martirizar por amor a Cristo, escrever aquele que ele consideraria o melhor livro do mundo e fundar uma escola de idiomas a fim de converter os “infiéis”. E assim como São Francisco, tomadas as devidas proporções, Lúlio se desfez de todos os seus bens e passou a peregrinar e a escrever sem parar, legando-nos aproximadamente 27.000 páginas. Por elas, o pensamento luliano é chamado de ciência interreligiosa e transcultural, partindo dos pressupostos comuns das três grandes religiões monoteístas: o judaísmo, o cristianismo e o islamismo.

Lúlio pretendia converter os “infiéis” não pela espada, mas pelo diálogo pacífico, daí a inteção da escola de idiomas, para aprender e ensinar nos mosteiros a língua dos povos crentes de outras religiões. Para ele, ao contrário da maioria dos escritores medievais, esses ensinamentos iam além do desafio intelectual: eram sua razão existencial.

Para alguém que viveu dentro da corte, usufruiu de certa riqueza, foi poeta trovadoresco, teve visões de Cristo, martirizou-se, abriu mão de seus bens, estudou e escreveu incansavelmente, acho que Lúlio está devidamente credenciado a nos puxar as orelhas de vez em quando.

(Publicado na página de Cultura do Jornal Comarca de Garça - 20/03)

quinta-feira, 22 de março de 2012

DANTE ALIGHIERI

O poeta filósofo




“Quem és tu que queres julgar / com vista que só alcança um palmo / coisas que estão a mil milhas?”

Dante Alighieri. Se perguntarmos para a maioria quem foi Dante, pode ser que ouçamos: “aquele cara da Divina Comédia?”. Isso se levarmos em consideração quem ao menos tenha ouvido falar neste brilhante espírito. E temos ainda que considerar que muitos crêem que a Divina Comédia se trate de uma história engraçada. E não é. Assim como Dante não é somente o autor deste clássico universal.
Erroneamente eu também imaginava, mesmo sabendo do grande gênio que ele foi, que Dante houvesse escrito alguns poucos poemas e textos filosóficos, mas que tivesse sido “autor de um sucesso só”. Tive a feliz surpresa de estar enganada quando li Dante Alighieri – O poeta filósofo, livro que resume de modo acertado a vida e as obras deste homem incrivelmente sábio.
Nascido em 1265 em Florença, Dante desde cedo, e mesmo pertencendo a uma família em condições econômicas razoáveis, se envolveu com política e criou caso com a Igreja. Nos dias de hoje Dante seria pejorativamente chamado de mero burguês, mas ainda assim ele foi um dos raros, senão o único de seu tempo a se preocupar com questões como moral, ética e espiritualidade. Isso além de ter sido um exímio lingüista.
Lá pela segunda metade do século XIII, várias casas da Itália (famílias poderosas e influentes) de diversas regiões, disputavam o controle político do país, concorrendo com a intervenção germânica e com a “ditadura” da Igreja. Dante dizia que o clero não deveria se meter em assuntos fora de sua alçada; para governar já existiam os reis e que o papel do Papa deveria se restringir a cuidar das almas e não dos cofres. Por conta disso foi perseguido e expulso de Florença.
Dante começou logo cedo a notar que o conhecimento era o maior tesouro que um homem poderia carregar: estudou ainda na adolescência matemática, dialética, gramática, retórica, aritmética, música, geometria, astronomia, e mesmo adulto, casado e com filhos e mudando de lugar, não matava ainda sua sede de saber. Adquiriu conhecimentos em filosofia, leis e teologia. Era homem público, ocupando importantes cargos, mas foi como filósofo e escritor que o mundo o conheceu. E deveria conhecer mais.
Através dessa leitura, que realmente me surpreendeu, vi que Dante vai muito além do que podemos imaginar. Além da Divina Comédia (fruto de longa pesquisa histórica, teológica e mitológica), Dante nos deixou verdadeiras jóias, ainda mal aproveitadas pela maioria, como Monarchia (ou Monarquia) e O Banquete (ou o Convívio), em que ele realmente banqueteia o leitor com argumentos que enaltecem o pensamento, o amor, a nobreza da alma, a sabedoria, remontando a sociedade medieval e apontando as faltas dos homens como a inveja, egoísmo, vaidade, materialismo e ignorância. Foi com essas obras que Dante conseguiu uma proeza: unificar a língua italiana. Expandida pela península, sob variadas formas regionais (e até rivais) o idioma foi estudado por Dante, que chegou a um “meio termo” para uniformizar o italiano.
Ainda que não fosse sua intenção, Dante, a meu ver, se revelou um autêntico espiritualista – e espírita: uma de suas mais belas passagens narra a morte de forma muito poética, comparando-a a uma nau que aporta no cais, depois de longa, cansativa e enriquecedora viagem. Dante faz perceber que a sabedoria é algo muito simples e que nobreza não tem nada a ver com sobrenome. É um exercício de respeito, desapego, de saber apreciar uma amizade, a natureza e a arte; que conhecer é libertar-se, e que Deus não está no ouro dos altares, mas dentro de nós mesmos.
São obviedades que muitos ainda desconhecem, por isso Dante, assim como outros grandes espíritos como Voltaire, Sêneca, Aristóteles, Lúlio e Erasmus vão ser sempre atuais. Tão óbvio quanto o fato de insistirmos em nossos velhos vícios de sempre, como a prepotência e o julgamento, que, aliadas à falta de conhecimento, são apontados por Dante como os maiores venenos da alma humana.

(Publicado na página de Cultura, do Jornal Comarca de Garça - 22 de março de 2012)

quarta-feira, 7 de março de 2012

A Moreninha

Sei que parece meio clichê, mas desta vez fiquei pensando em um livro que tivesse a ver com o Dia da Mulher. Pensei em grandes poetisas ou figuras históricas, pintoras e cientistas. Florbela Espanca, Tarsila do Amaral, Clarice Lispector, Madre Teresa, Anne Frank, Marie Curie, Frida Khalo, Olga Benário, Cecília Meireles, Joana d’Arc, Maria de Nazaré. São tantas mulheres imortais, fortes, decididas, à frente de sua época, mártires, brilhantes. Falar delas numa data como hoje seria mesmo um clichê.
Então resolvi falar de uma mocinha que também se imortalizou em nossa literatura, uma adorável aborrecente, um tanto infantilizada, caprichosa, mimada, mas muito esperta e apaixonada. Carolina. A moreninha. Protagonista da obra de Joaquim Manuel de Macedo, bem como a maioria das personagens do livro, representa a juventude burguesa carioca do século XIX. Descompromissada, meio cabecinha de vento, mas ainda com uma certa inocência.
O livro foi escrito em 1844 e é tido como o primeiro romance tipicamente brasileiro. Entretanto se houvesse uma categoria além do Romantismo, algo como “Romantismo com pouca água e muito açúcar”, A Moreninha se encaixaria aí. Não que a obra seja enfadonha. Pelo contrário! É uma leitura gostosa, divertida e não deixa de ter o seu lado quase documental ao retratar alguns aspectos históricos como o comportamento da burguesia, as vestimentas, as festas, o pensamento da época.
A trama é bem simples e nos faz criar um paralelo entre a juventude daqueles tempos e a de hoje. Por vezes já quis ser uma espécie de Carolina, feliz e protegida numa redoma de alienação e meras dúvidas juvenis. A história gira em torno de uma aposta feita entre quatro amigos: Augusto, Leopoldo, Fabrício e Felipe, todos estudantes de Medicina. Sabendo que Augusto tinha fama de conquistador e que não conseguia ficar com a mesma moça por mais de quinze dias, seus amigos apostaram que se alguma vez ele se apaixonasse de verdade e ultrapassar os 15 dias, Augusto deveria escrever um romance.
Um dia eles foram convidados por D. Ana, avó de Felipe, a passar o dia em uma ilha de sua propriedade, onde haveria uma festa (geograficamente falando, era a Ilha de Paquetá), e lá Augusto se encantou por Carolina, irmã do amigo. A mocinha, embora negasse até a morte e desdenhasse de Augusto o tempo todo, também se sentiu atraída pelo estudante. Durante a festa, recheada de cenas e diálogos engraçadinhos, os amigos de Augusto espalhavam sua má reputação de “galinha”, o que provocava Carolina, que como uma típica criança espoleta, dava vários foras no moço.
Augusto chegou a confessar à D. Ana que ele se comportava assim e nunca assumia nenhum compromisso porque quando era criança, ele jurou amor a uma menininha que conheceu na praia e com quem trocou um breve (tipo de camafeu), mas que nunca mais a vira e nem soubera o nome. E que ao estar se apaixonando por Carolina ele sentia como se estivesse quebrando sua promessa e traindo a tal menininha.
Entre suspiros, xingamentos, olhares e foras, Carolina e Augusto se gostavam cada vez mais, e a espevitada moreninha acaba fazendo com que ele quebre essa promessa. E Augusto o faz de bom grado, quando descobre a ligação de Carolina com a menininha da praia. Quem leu ou um dia, quem sabe, ler o romance, entende ou entenderá como isso se deu e o que essa “patricinha do século XIX” tinha a ver com essa jura do passado, tão sincera e inocente.
Lembrei-me das grandes mulheres e também da Moreninha no Dia da Mulher, pois por mais fortes que muitas de nós sejamos, um dia fomos menininhas, um dia fomos mocinhas e essas versões de nós mesmas nos trouxeram até aqui, às mulheres que somos hoje.


Cartaz do filme, de 1970

quinta-feira, 1 de março de 2012

Antônio & Cleópatra


Uma rainha caprichosa, fogosa e dominadora e um líder respeitado e influente, mas apaixonado e que diante de sua amante, se porta como um cordeirinho. Intrigas, ambição, desencontros.

Ingredientes que caberiam muito bem em alguma comédia shakespiriana, famosas por seus amores atrapalhados, suas matronas cheias de personalidade e suas futriquinhas pelo poder. Mas neste caso, William tece um drama épico, um dos mais famosos não só da literatura, mas do mundo – já que aqui falamos de pessoas do mundo real, do militar romano e da soberana egípcia, de Marco Antônio e Cleópatra.

Antônio e Cleópatra até que tinham tudo para viverem felizes para sempre, mas como é de costume na história da humanidade, há um detalhe para estragar tudo: política. A peça de tragédia, dividida em 5 atos, foi escrita por volta de 1607, tem algumas passagens mais leves, alguns diálogos por vezes um pouco cansativos por conta do número (exagerado, eu diria) de personagens, mas de repente, a trama ganha impulso e como sempre acontece, William nos prende até a última página, costurando as intrigas políticas com fervorosas conversas apaixonadas.

O desfecho, como muitos devem saber, seria quase digno de um dramalhão mexicano, um final realmente dramático causado por informações desencontradas, meias-verdades e o desespero da rainha ao imaginar que perdeu seu amor para sempre.

Confesso que nunca fui muito afeita a histórias de amor, mas resolvi comprar o livro por dois motivos óbvios: é uma obra shakespiriana e envolve dois grandes vultos de nossa História. Tinha curiosidade em saber como William os havia retratado, e não me decepcionei. Alerto que Antônio & Cleópatra merece uma leitura muito atenciosa, pois em vários trechos temos a sensação de estarmos meio perdidos. Então, a quem for lê-la, recomendo que não faça como eu, que lia no metrô ou durante algumas aulas de matemática. Tive que ler novamente, com calma, pois a trama, embora pareça simples, tem vários detalhes importantes.

Imagino que há quem pense que Cleópatra era somente uma rainha fútil que passava os dias tomando banho em leite de cabra e dando ordens, sendo abanada com penas de pavão por seus criados só esperando Marco Antônio regressar de Roma para satisfazê-la e que, um dia, assim do nada, só porque ficou um pouquinho deprimida, resolveu se deixar picar por um cobra.

Muito pelo contrário; a vida de ambos, juntos ou separados, poderia render grandes obras, e Shakespeare provou isso. Contou, através da relação amorosa da famosa egípcia com o emblemático romano, a ambição de se estabelecer no Oriente um grandioso império, pois Cleópatra era naturalmente uma grande governante. Mas ela viu seus planos serem interrompidos pelos interesses políticos de Otávio Augusto que, em 43 d.C formava, ao lado de Marco Antônio e Emílio Lépidus, o segundo triunvirato do império romano. 

Para começar Marco Antônio era casado, mas ainda assim vivia no Egito com a amante, e como parecia estar definitivamente preso a ela deixando seu lado político a desejar, Otávio Augusto inventa que a esposa de Antônio, Fúlvia, havia morrido. Quando ele volta à Roma para checar a história, Otávio empurra sua irmã Otávia para casar-se com Marco Antônio, mantendo-o assim, mais atrelado ao governo. Sabendo que seu amado fora obrigado a casar-se, Cleópatra manda espalhar a notícia de que ela havia se matado.

O que ela não imaginava é que nessa tentativa, talvez, de fazer a consciência de Antônio pesar ou de simplesmente “fazer um charme”, Cleópatra causou a morte do amante, de verdade. Ainda muito apaixonado e agora muito triste, Marco Antônio comete suicídio. Em seguida quem se mata é Cleópatra, envenenada por uma víbora. Não sei se é impressão só minha, mas esse morre-não-morre me lembrou um pouco Romeu e Julieta. Mas entre os apaixonados de Verona e os amantes imperadores, sou muito mais Antônio e Cleópatra.



Morte de Cleópatra, por Guido Cagnacci, 1652