segunda-feira, 25 de maio de 2009

LICENÇA PARA FICAR IRRITADA


“…Estou boquiaberto / Não sei o que é certo / Também já não sei o que é errado / Eu leio o que a lei / Me diz para fazer / Mas olho em volta e ninguem faz / Então não faço / Amasso a convenção / Fumo na condução / Jogo no chão o maço de cigarro / Avanço o sinal / Suborno o fiscal / E todo mundo faz igual...”
(Boquiaberto – Biquíni Cavadão)

Ainda não sei se é porque eu estou chegando à casa dos trinta, mas o caso é que reparei que estou ficando cada vez mais irritadiça com uma infinidade de coisas que antes não me provocavam tanto. Adolescente não é muito de reparar nas coisas erradas. No fundo adolescente é um grande egoísta que olha para o prórpio umbigo, ignora o que os pais dizem (os que dizem e quando dizem) e preferem ouvir os amigos tão ou mais inexperientes que eles. E só fazem porcaria. Creio que já faz um bom tempo que larguei a adolescência, então me dou o direito de meter a boca nessa fase tão linda e tão oca da vida. Oca sim. Quisera eu, poder voltar no tempo e ter aos dezesseis anos o mesmo conhecimento que tenho hoje (e que ainda não é muito). Quisera eu, aos dezessete ler tanto quanto leio hoje. E aos 18 deveria ter me espiritualizado mais. Mas como os mais velhos dizem: “a gente não pensa”. Balzac acertou em dizer que as mulheres de trinta são as melhores. Pelo menos eu, apesar de tantas interpéries, me sinto alguém melhor. Não A MELHOR, mas a melhor que eu tento ser. E como o tempo vai passando, vamos nos tornando pessoas mais seletivas, mais cautelosas, mas analíticas, mais racionais. E mais rabugentas! Eu tenho me sentido profundamente rabugenta a cada dia que passa – não confundam com mal educada.

E há coisas que me irritam mais, outras menos (estou para fazer uma lista), mas depois de ter me tornado passageira assídua de ônibus de Garça a Marília nesses últimos meses, vi que tenho razão em sentir tais irritações. A começar que, não sei por que (e gostaria muito que alguém explicasse), os ônibus ainda não conseguem atender a demanda de passageiros. Dependendo do horário, vamos todos espremidos e chacoalhando, levando cutucões, pisões, sendo obrigados a ouvir piadinhas de gosto duvidoso, levando guarda-chuvadas (se o termo não existia, passou a existir) e sacoladas – e daqueles pacotes enormes da Tanger! Um lembrete ao(s) dono(s) da Turismar: você(s) não transportam gado; transportam pessoas. Será que custa muito disponibilizar mais carros em determinados horários? Sei que é difícil, mas nessas horas não pensem só em dinheiro: respeito é algo que não tem preço.

Especialmente porque a falta de espaço incentiva a proliferação de gente folgada. Cansei de ver marmanjos e mocinhas sentados nos bancos reservados aos idosos e que não se levantam quando os vêem entrar no ônibus. Ou fingem que não estão olhando, fazem de conta que estão dormindo ou simplesmente não se movem por pura má vontade. Uma vez uma senhorinha entrou no ônibus e já não tinha mais lugar nem para uma agulha. E um adolescente, de uns treze ou quatorze anos, bem esparramadão no primeiro banco. Ele a viu em pé e nada fez. Voltou a olhar a estrada. Cedi meu lugar a senhorinha, com muita raiva não só desse empiasto, mas por causa da mãe dele, que devia ter dado a devida educação bem antes dessa criatura saber o que é um ônibus. A mamãezinha do folgado estava com ele e nem sequer esboçou a intenção de dizer “filho, dá o seu lugar pra essa senhora”. E na mesma viagem, ainda na rodoviária, uma estudante tira o boleto da universidade da mochila, rasga e atira os pedacinhos pela janela. Deve ser uma dessas mentes brilhantes que pensam “ah, a faxineira da rodoviária está sendo paga pra limpar mesmo”. É ou não é irritante esse tipo de mentalidade? Por que tem gente que tem mania de espalhar lixo por onde passa? Até a cobradora do ônibus, numa outra viagem, resolveu descarregar o furador de papel dentro do veículo, no meio do corredor. Foi “confete” pra todo lado. E ela ainda achou graça. Depois a gente diz que se isso acontecesse na Europa, nos Estados Unidos ou no Japão ia acabar em multa, as pessoas acham ruim. Eu já passei a ignorar essa gente que vem querendo dar liçãozinha de moral dizendo “você não valoriza as coisas do seu país” ou criticando quem cita os estrangeiros como exemplo. É lógico que no exterior nem tudo são flores, mas experimenta jogar um copinho descartável na rua no Japão. Ai de você se não ceder seu lugar para uma pessoa mais velha! Lá os mais velhos não são somente respeitados. São reverenciados.

O festival de irritação não pára por aqui. Ainda teve a vez da mocinha que tentou viajar com um bebê de colo e também ninguém quis se levantar. Ela passou por um adolescente que também ocupava os bancos especiais e que nada fez. E do lado dele, um homem que também não se levantou. Eu, que estava em pé do lado deles, ouvi o cara dizendo que depois do almoço ele sente preguiça. Um sujeitinho desse naipe, que decretou a morte do cavalheirismo, será que nunca teve mãe, irmã, filha? E será que esses moleques que se acham tão espertos não pensam que suas mamãzinhas um dia vão precisar de um acento num ônibus lotado?

Ainda tem a categoria dos metidos a engraçadinhos. Durante o período que tive que viajar, sempre pegava o ônibus no mesmo horário. É fatal encontrarmos basicamente as mesmas pessoas. E como toda turma do fundão é sempre a mais chata, dessa vez não ia ser diferente: uns e outros homens sempre fazendo gracinhas com as mulheres e contando piadinhas inconvenientes. Por outro lado, há moças permissivas que pensam que estão abafando, se sentindo as musas do ônibus, por causa de certas cantadas no mínimo nojentas. Como uma moça que – deu a entender – era vendedora de lingerie. Os caras aproveitaram a deixa e falavam bem alto, pra quem quisesse ou não quisesse ouvir: “amanhã você me traz a sua calcinha?”. E outro completou: “a preta!”. E ela ainda achava engraçado. Sinceramente, uma mulher que ouve frases dessa natureza e é conivente, é porque não tem muito respeito próprio. Ou então acha graça de qualquer bobagem. Ia esquecendo de mencionar, mas também me irrito com humor gratuito, a graça pela graça, piada de A Praça é Nossa, espírito de quem passa o domingo assistindo ao Gugu. Uma das coisas mais odiosas nesse mundo é música de duplo sentido, sobretudo as de conotação sexual com conteúdo machista e preconceituoso etnicamente. Deve ser por isso que eu detesto axé, funk e afins.

No meu último dia de curso em Marília, na volta, ainda tive que ouvir o motorista da Turismar gritar um retumbante “Seu véio f*d*p*!”, depois de ter sido cortado no semáforo. Isso com moças e senhoras a bordo. Eu gostaria de saber se ele se incomodaria se algum grosseirão gritasse palavrões perto de alguma mulher da família dele.Quem foi que disse que todo brasileiro é hospitaleiro e educado? Quem soltou essa frase deveria viajar mais de ônibus circular. E pensando bem, não seria o simples fato de aliviar o número de passageiros que ajudaria a melhorar a educação das pessoas. Pois se um adolescente é folgado e um homem é egoísta, preguiçoso e boca suja, eles não o serão somente num ônibus. Serão em qualquer lugar. Na escola, em casa, num supermercado, na padaria, num restaurante, em família. E esse papo de que educação começa em casa, é verdade, mas em partes. Acredito que a outra parte – além da escola – devesse ser inerente em cada ser humano. Eu prefiro acreditar que cada um de nós nasceu com um gene da boa educação. Os nossos pais e professores têm o papel de os fazer despertar. Porque não é possível que alguém veja uma pessoa idosa tentando se manter em pé dentro de um veículo cheio e requebrante e não faça nada! Não é preciso que a mãe fale. É instintivo que a pessoa se levante e ceder o lugar! Do mesmo modo que deveria ser nato numa mocinha universitária – que, em tese, tem mais noção das coisas – que é ridículo ficar atirando papel picado pela janela. Ela que vá fazer a faxina da sua mochila em casa. Os motoristas deveriam se tocar de que o trânsito não vai melhorar em nada com seus gritos chulos. E que certas mulheres que pensam que estão sendo muito liberais, na verdade estão sendo é libertinas.

São atos pequenos, são práticas que podem soar bobas, mas que dia após dia, cometidos repetidamente, vão irritando. E no meu caso, fazem com que eu perca gradativamente a fé nesse povo. E não estou falando de Garça ou Marília em especial. Falo do país. Gente indolente, imprestável, espertinha, maliciosa e individualista existe em todo lugar. E conhecendo muitas professoras, eu sou testemunha de que a escola faz o que pode para tentar educar essa nova geração inerte, mentalmente defasada e espiritualmente pobre. E também não adianta jogar tudo nas costas das instituições de ensino. Então, existe alguma solução ou essa é uma realidade sem conserto? Será que seria o caso de as pessoas irritadiças como eu começarem a se tornar insensíveis? Ou tentarmos correr pra longe, fugir? Para que eu não escreva mais nenhuma frase irritante para o leitor, deixo sábias e inspiradoras palavras de outra música do Biquíni (Discivilização): “Qualquer dia desses ainda pego o meu carro e sumo daqui. Vou aonde der a gasolina. Daí em diante ando a pé, até encontrar carona em carro de boi. Suspendo o meu ódio e salto num vale inatingível. Percorrerei a mata e me embrenharei por ela até chegar numa árvore, a mais alta, e tirar um cochilo jóia”.
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Desenho: Seu Donizildo (Mundo Canibal) - o personagem mais irritado do mundo.