quinta-feira, 4 de agosto de 2011

Shakespeare, I love you!


Ao contrário da indicação shakespiriana anterior, o envolvente suspense quase paranormal Macbeth, As alegres matronas de Windsor apresenta um enredo bem mais leve, divertido e até açucarado deste inglês pelo qual eu me apaixonei irremediavelmente.

Em 1597, William Shakespeare recebeu a incumbência de escrever “para ontem” uma peça, encomendada pela Rainha Elisabeth. 14 dias depois ele lhe apresentou essa comédia farsesca de costumes que aponta os gostos e desgostos dos relacionamentos, entre ciúmes, suspeitas, traições, artimanhas de sedução, entre outras passagens que fazem dessa obra uma de suas melhores peças e de Sir John Falstaff um de seus personagens mais queridos – ao lado do emblemático Hamlet.
Conforme o nome sugere, o caso todo se dá na cidade inglesa de Windsor e Falstaff, um gorducho azarado e falido tenta achar um meio de voltar a ter uma boa vida sem fazer esforço. Acreditando piamente que é irresistível, ele vê nas senhoras Ford e Page a saída para a sua maré de má sorte.

Ensaiando um discurso de conquista e mandando bilhetinhos através das criadas, ele pretende seduzir as duas (sem que uma saiba da outra) para depois desfrutar do dinheiro de seus maridos, dois dos homens mais ricos das redondezas. Shakespeare faz das duas amigas, mulheres espertas, e esse é um dos pontos mais bacanas da obra. As senhoras Ford e Page logo percebem as intenções interesseiras de Falstaff, que usa o mesmo texto manjado nas cartas para ambas. Assim que elas notam o embuste, partem juntas para um engraçado plano de vingança. O que se dá na sequência é uma série de cenas ótimas em que Falstaff se torna – merecidamente – vítima do cinismo das matronas, que inventam várias formas divertidas de humilhar o golpista. Ele, mesmo se vendo em situações ridículas (como na hora em que se mete num cesto de roupas sujas para se esconder do marido de uma delas), ainda acredita em seu poder de sedução.
As confusões aumentam quando o Sr. Ford, não sabendo ainda da combinação das amigas, crê que sua esposa realmente pretende traí-lo com o luxuriento mentiroso e “convida” o Sr. Page para aplicar-lhes um flagrante.
Paralela às agruras do conquistador feioso, há ainda a história da senhorita Ana Page, cantada por três rapazes, Slender, Dr. Caius e Fenton, que com suas virtudes e “senões”, disputam a atenção da moça.
 
Apesar de todas as judiações que as matronas aplicam no embusteiro, há também um certo toque fraternal mantido por Shakespeare. Mas o diferencial está sem dúvida na movimentação das cenas – talvez uma de suas obras mais “agitadas” – com diálogos afiados e situações cômicas. É uma prova de que trabalhar sob pressão funciona e Shakespeare deu, não somente à Rainha Elisabeth, mas a todos os apaixonados por literatura, um grande presente.

As alegres matronas de Windsor
Autor: William Shakespeare
Editora: L & PM Pocket
Páginas: 136



"Miau" livrinho da semana:


Em resposta àqueles que dizem que gatos não têm serventia, que só se apegam a casa e não ao dono, que são oblíquos, dúbios, traidores ou até amaldiçoados (a ignorância desconhece limites), o escritor norte-americano Sam Stall fez a delicadeza de mostrar que os felinos, ao contrário de todos esses grandes absurdos, deram sua contribuição para a História, participando de importantes episódios das ciências, artes, política, literatura e religião.

Só quem convive, adota, cria, salva e ama os gatos entende como eles gostam de seus donos e que nem por isso deixam de ser eles mesmos. Eles são a pura tradução do amor autêntico, sem amarras: o gato é livre, vai onde quer e quando quer, mas nem por isso deixa seu dono para trás. Quem estiver disposto a ter um felino deve aprender a praticar o desapego e a compreensão. Grandes lições, sem pronunciar uma palavra.
Os gatos estão na vida dos humanos desde tempos imemoriais, evoluindo também, mas alheios aos avanços do homem – seus companheiros bípedes podem tomar o rumo que quiserem desde que para eles, felinos, não lhes falte comida, areia e um lugarzinho ao sol, de preferência no alto, de onde ele pode observar o mundo. Entretanto o relacionamento entre nós e eles passou por altos e baixos: os gatos já tiveram os postos de divindades – como Bastet, a deusa gata do Egito que também habita meu quarto – até os gatos cúmplices das bruxas na Idade Média, que eram, junto com as injustiçadas mulheres, caçados e queimados. De caçadores de ratos em silos, navios e porões até amáveis companheiros de cientistas e escritores.

Ofuscados pelos feitos dos cães, os gatos se mostram mais astutos e inteligentes – convivendo com dezenas deles há tanto tempo, já notei as diferenças e sei bem do que eu e Stall falamos.
100 gatos traz uma lista de bigodudos que deram uma forcinha em várias áreas do conhecimento humano como Snowball, o gato que prendeu um assassino; Macek, o gato que brilhou no escuro; o irritante felino de Sir Isaac Newton que o inspirou a criar as portinhas para gatos; Tee Cee, o gato que previa convulsões; Muezza, a gata favorita de Maomé; Cattarina, a gatinha que tocou o coração negro de Edgar Allan Poe; Mrs. Chippy, o gato que explorou a Antártica; Félix, o primeiro gato a visitar o espaço ou até um bichano que ligou para a polícia para salvar seu dono.

Alguns, é certo, criaram algumas confusões, mas com as melhores intenções, como o gato “fornecedor” que levava pombos para matar a fome de um preso; Oscar, o gato que afundou o Bismark, navio alemão no auge da 2ª Guerra Mundial ou Cobby, o gato que roubou o coração do seu dono – literalmente.
Além dos gatos de carne e osso, cujas histórias são verídicas e belamente contadas, há ainda alguns felinos cuja origem quase se perde no tempo, mas que fizeram surgir lendas, costumes e até ícones famosos, como o maneki neko. Hoje comumente encontrado em estabelecimentos comerciais orientais como lojas, restaurantes e mercadinhos, esse bichano que segura uma moeda com uma pata e acena com a outra é símbolo de prosperidade e boa sorte. A origem da figura, embora tenha características mitológicas, também parece ser bem real e nos remete ao período Edo no Japão (1603 – 1867). Mas atualmente a cultura pop se apoderou desse símbolo transformando-o inclusive em desenhos e produtos, capturando seus traços nos dando personagens como o pokémon Meowth e a gatinha Hello Kitty.

Selvagens, deuses, bruxos, caçadores, presentes na ciência, na literatura ou no espaço, abrandando ou roubando corações, não há como não amar esse delicioso mistério da natureza, ou como define Stall: “Os gatos são um tipo misterioso de criaturas. Há mais coisas na mente deles do que nós imaginamos”.

100 gatos que mudaram a civilização – Os gatos mais influentes da História
Autor: Sam Stall
Editora: Prumo
Páginas: 248

Mulheres no Brasil Colonial


Antes que se pense o contrário, não se trata de um discurso feminista. Mas de um levantamento no mínimo justo sobre o papel das mulheres no período colonial brasileiro, tanto dentro das casas e das famílias, quanto nas ruas, nas sarjetas, nos campos e nas senzalas.
É um breve relato, sucinto e valioso que descortina o mito de que a mulher era um mero enfeite, peça de troca entre famílias, parideira ou burro de carga de seus maridos e senhores. Até eram. Mas não unicamente isso. Dentro de um contexto desfavorável, nossas mulheres coloniais fizeram muito, foram além do que imaginamos ou aprendemos nos comuns livros de História. Nossas ancestrais também tinham suas armas, seus meios, seus métodos persuasivos, essenciais para sua sobrevivência.

A obra, da historiadora, doutora e escritora Mary Del Priore, analisa, com base nos hábitos, costumes e privações as origens do machismo no Brasil, ainda tão presente em nossa realidade, e mostra que aquela máxima de mau gosto que diz que lugar de mulher é na cozinha não passa de um pensamento paupérrimo. Lugar de mulher é na História.
As mulheres escravas, negras ou índias, “estudando” o modo de agir e pensar de seus senhores, tinham seus métodos para conseguir alguma condição de vida um pouco melhor, ou um pouco menos sofrida, uma vez que a Igreja não permitia os casamentos inter-raciais. Elas eram mais diplomáticas que os homens nas relações pessoais com seus donos e tinham algum poder de convencimento sobre eles para conseguir sua liberdade ou a de seus filhos – bastardos – lhes prestando bons serviços ou suprindo certas carências que o casamento por vezes não proporcionava ao senhor de engenho. A miscigenação do povo brasileiro se deve muito a essa prática.
Assim, temos as mulheres que se mostraram grandes mães, geralmente as mais pobres, cujos companheiros eram negligentes ou inexistentes, o que aumentava ainda mais a sua luta pela vida. Isso ajuda a combater de algum modo, a imagem negativa que se tem dessas mulheres pobres e marginalizadas, tidas como mães ruins que apelavam para o infanticídio ou aborto, que eram vistas desgarradas e promíscuas. Entretanto, seu modo de sobrevivência era resultado de uma sociedade opressora e de instituições omissas. Algumas até chegavam a esses extremos, de matar seus próprios filhos, tomadas de profundo desespero, no auge do abandono.

 
Já as senhoras brancas, as esposas oficiais, eram obrigadas a tolerar a ideia de dividir seus maridos com suas escravas e suportar dentro de sua casa os rebentos, frutos dessas traições, tão constantes e até normais, naqueles tempos.
As relações de afetividade eram discretíssimas, mas havia perseguições por parte das senhoras para com as escravas preferidas de seu senhor, mas nada que fosse tão escandaloso que pudesse macular sua imagem perante os familiares e a sociedade. Mas elas tinham que engolir a seco certos “desaforos”: quando a esposa não podia dar um filho ao marido, o bastardo (negro ou índio) era então reconhecido como legítimo e passava a ser herdeiro dos bens da família.
Naqueles tempos as mães solteiras já se viam na missão de assumir uma dupla jornada de trabalho, a fim de prover o sustento e a liberdade dos filhos: quando não estavam na lida da casa grande, estavam nas ruas com seus tabuleiros de frutas e quitutes. As solteiras, viúvas e “mulheres do mundo” que tinham que assumir o papel de esteio da família e que possuíam algum bem, como gado, se embrenhavam pelas estradas em lombo de burro para negociar seus produtos. Elas eram comumente encontradas em São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Goiás e Bahia.

As que iam para as cidades também precisavam se virar e algumas conseguiam escapar da prostituição. As imigrantes portuguesas podiam viver de suas costuras, da venda de doces ou sendo donas de seu próprio estabelecimento – as mais “ousadas” tinham seu comércio e ganharam certo respeito, como foi o caso da taberneira lusitana Maria Mena. As índias eram peça fundamental para a manutenção das tribos, cuidavam da alimentação e das crianças, carregavam os mantimentos e serviam como “presentes” para os portugueses e franceses. Nas cidades ou nos campos, as mulheres que possuíam conhecimento ancestral fitoterápico e que cultivavam ervas em seus quintais, sabiam de suas propriedades e as manipulavam, eram consideradas renomadas curandeiras.
Ainda que a maioria esmagadora não fosse vista como ser pensante na sociedade, fosse analfabeta, politicamente nula e praticamente invisível, sem elas nenhuma dessas estruturas – tribo, colônia, cidade – não teria vingado.
É evidente que a obra é bem mais rica do que essa descrição. É leitura obrigatória para quem, como eu, ama a História do Brasil ou para quem ainda acredita que o país foi feito apenas por grandes homens. O curso da criação da sociedade brasileira foi traçado por grandes mulheres anônimas.

Mulheres no Brasil Colonial – A mulher no imaginário social. Mãe e mulher, honra e desordem. Religiosidade e sexualidade.
Autores: Mary Del Priore
Editora: Contexto
Páginas: 95



TOCA RAUL!

“Eu sempre quis ser cantor, de rock. Foi a única música que me influenciou. Antes disso minha inclinação era a literatura. Estudava muito filosofia, literatura, e não tinha tempo para cantar profissionalmente; nunca havia pensado que a música poderia ser um veículo importantíssimo para dizer o que eu queria. Quando tomei consciência disso foi ótimo. Gosto de falar de mim. Sou individualista. O rock é o melhor ritmo para gente dizer uma porção de coisas.” (Raul Seixas)

Ainda celebrando (sempre) o Dia Mundial do Rock, faço questão de lembrar o nosso rei Raul. Bom, rei talvez não seja um título que agradaria a Raul, creio, pois genioso, era avesso a esse tipo de rapapés. O fato é que Raul é o maior e mais emblemático roqueiro do Brasil. Foi ao exterior e bebeu na fonte de músicos como Elvis (um de seus ídolos maiores) e deu um tempero nordestino a tudo o que absorveu.

Raul Santos Seixas, aparecido em Salvador em 28/6/45 e desaparecido em São Paulo em 21/8/89, acumulou, além do apelido de “Maluco Beleza”, o de “Pai do rock brasileiro”. Ao longo de seus 26 anos de carreira, Raul foi pioneiro quando misturou o rock com o baião. Let me sing, let me sing é a maior referência dessa ousada mistura.



A sua vida foi até relativamente curta, porém intensa, lotada de histórias, trabalhos, desafios e desaforos, criatividade e provocações. Muitos autores tentaram e tentam ainda hoje sintetizar tanta vivência em um livro, mas o trabalho não é fácil. Entretanto, as duas obras que li – até agora – trazem, na medida do possível um apanhado interessante sobre a vida e obra de Raulzito, o canceriano sem lar.

Organizado e ao mesmo tempo solto, Verdade Absoluta é feito de retalhos de depoimentos de pessoas (afortunadas) que conviveram com Raul e que com ele dividiram situações – ora inusitadas, ora comuns, mas que renderam citações, citações que renderam letras, que renderam músicas, que renderam algumas verdades.

Um das (várias) passagens diz que “Inspirado no anarquista francês Proudhon (1809 – 1865), depois que leu ‘Filosofia da Miséria’ e ‘Resistência ao Exército’, decidiu que não iria servir ao Exército. Também não queria prosperar. Proudhon dizia: a prosperidade é um roubo. Iria usar a música para meter a boca, reclamar: ‘Vamos ver agora quem é que vai aguentar!’”.

E um dos pontos mais bacanas do livro, além do óbvio, está nas últimas páginas, com referências organizadas de cada citação, de onde ela saiu e onde ela foi parar. Por exemplo: “Vamos ver quem é que agora vai aguentar”:
Página: 119
Origem: Disco 8 (Há 10 mil anos atrás – 1976)
Consta na música/texto: Eu também vou reclamar
Autores: Raul Seixas e Paulo Coelho

E isso acontece com todas as centenas e centenas de frases de Raul. Ou seja, aqui ele aparece destrinchado, esmiuçado, mastigado – e deliciosamente digerido.

Raul Seixas por ele mesmo foi escrito a partir de entrevistas, frases, declarações, palavras soltas, pensamentos, papéis avulsos, porém reveladores, produzidos durante sua estada por aqui, até o dia em que “o moço do disco voador” o levou. As histórias foram reunidas e organizadas pelo escritor e amigo de Seixas, Sylvio Passos, fundador do Raul Rock Club/Raul Seixas Oficial Fã-Clube. Não é exatamente uma obra autobiográfica, mas por muitas vezes a impressão que temos é que Raul fala diretamente conosco. É como se ele puxasse uma cadeira e se sentasse diante da gente e nos explicasse suas mais simples verdades: “Daí eu juntei Luiz Gonzaga com Elvis. Eu não fiz um ritmo ‘rock-baião’. Isso foi informação musical. Aconteceu! (...) O som de Let me sing, let me sing é de 56; apesar de parecer uma gozação, eu acho esta música seríssima, é apenas o início de um trabalho muito grande que eu pretendo desenvolver degrau por degrau (...) Não tenho estilo, eu tenho é muita coisa pra dizer. E digo (...) Eu creio na abertura mental que vem por aí. Até então as portas estiveram fechadas. Devagar elas vão se abrindo e nunca mais, nunca mais se fecharão”.



Raul por ele mesmo é o nome mais justo que se pode dar a essa obra, pois entre uma declaração e outra é como se ele baixasse um pouco a guarda e fizesse as vezes de um amigo mais velho e experiente que tenta nos levar à luz, ao conhecimento, à liberdade, à pedra do Gênesis, “ao segredo almejado desde a aurora dos tempos por gênios, sábios, alquimistas e conquistadores”, a uma verdade que está bem diante dos nossos olhos, que até podemos tocar.

Raul Seixas – A verdade absoluta – Filosofias, políticas e lutas
Autor: Mário Lucena
Editora: Mac Bel – Oficina de Letras
Páginas: 225
(acompanha CD inédito, com letras feitas para Raul, de Roberto Seixas – amigo e cover de Raulzito)

Raul Seixas por ele mesmo
Autor: Sylvio Passos
Editora: Martin Claret
Páginas: 176