sexta-feira, 30 de março de 2012

O Livro dos Mil Provérbios




“Nem pela linhagem, nem pela riqueza estás tão honrado quanto pelos bons costumes”
 – Raimundo Lúlio (1232-1316)

Conselhos sobre Deus, príncipes, súditos, parentes, mulheres, escudeiros, companhia, vizinho, amigo, inimigo, justiça, prudência, fortaleza, temperança, fé, esperança, caridade, verdade, contrição, consciência, penitência, confissão, satisfação, santidade, abstinência, humildade, piedade, devoção, oração, paciência, consolação, obediência, lealdade, largueza, perseverança, cortesia, honra, vida, morte, avareza, glutonia, luxúria, orgulho, ociosidade, inveja, ira, falar, riqueza, pobreza, diligência, intenção.

Quantos pitacos vindos de uma pessoa só!

Normalmente os conselhos vêm de pessoas próximas de nós, que desinteressadamente nos querem bem e que têm muita experiência de vida para compartilhar. Ou vêm simplesmente de chatos intrometidos que não querem nos ver tendo o prazer de arriscar. E aí aprendemos ou pelo amor, ou pela dor, mas sempre se aprende, e os ensinamentos ficam, a sabedoria aumenta. Observação, aprendizado e sabedoria são materiais fundamentais para bons conselhos, que com o passar do tempo tomam a forma de provérbios, ou aforismos. Provérbios nada mais são do que conselhos, só que ditos de outra maneira. De modo reto, direto e definitivo, ora com bom humor, ora com sarcasmo, mas que atravessam os séculos, porque são justos e verdadeiros.

O Livro dos Mil Provérbios, de Lúlio, traz bem mais que opiniões e advertências de um beato medieval, que à primeira vista pode parecer moralista demais. Mas traz uma série de pensamentos que povos de todos os cantos do mundo têm incutidos em sua cultura, e que são usados para lembrar a humanidade que ela tem praticamente nada mais que a obrigação de seguir o caminho do bem e de ficar se policiando para não cometer (ainda mais) besteiras. É o tipo de livro para se ter sempre por perto e aberto aleatoriamente, pois onde quer que o abramos, haverá ali um bom alerta ou um bom alento.

O mestre catalão escreveu e teceu teorias como um doido, e esses mil provérbios são apenas um resumo, uma síntese dos ensinamentos de suas 343 obras; palavras que vêm sendo publicadas, estudadas e pensadas desde o século XIV até os dias de hoje.

Nascido na Ilha de Maiorca em 1232, Ramon Lllull iniciou sua carreira intelectual no reinado de Jaime II, no século XIII, servindo-lhe como preceptor e senescal (uma espécie de superintendente). Na corte, ele recorria sempre à poesia trovadoresca para fazer galenteios às damas da alta nobreza. Passou um tempo escrevendo cantos amorosos até que um evento, no mínimo curioso, mudou sua vida completamente. Numa noite de 1263, enquanto se atinha a seus escritos, Lúlio deu de cara com uma aparição de Cristo crucificado, visão que se repetiu outras cinco vezes até o escritor tivesse a iniciativa de estabelecer três metas para a sua vida: se martirizar por amor a Cristo, escrever aquele que ele consideraria o melhor livro do mundo e fundar uma escola de idiomas a fim de converter os “infiéis”. E assim como São Francisco, tomadas as devidas proporções, Lúlio se desfez de todos os seus bens e passou a peregrinar e a escrever sem parar, legando-nos aproximadamente 27.000 páginas. Por elas, o pensamento luliano é chamado de ciência interreligiosa e transcultural, partindo dos pressupostos comuns das três grandes religiões monoteístas: o judaísmo, o cristianismo e o islamismo.

Lúlio pretendia converter os “infiéis” não pela espada, mas pelo diálogo pacífico, daí a inteção da escola de idiomas, para aprender e ensinar nos mosteiros a língua dos povos crentes de outras religiões. Para ele, ao contrário da maioria dos escritores medievais, esses ensinamentos iam além do desafio intelectual: eram sua razão existencial.

Para alguém que viveu dentro da corte, usufruiu de certa riqueza, foi poeta trovadoresco, teve visões de Cristo, martirizou-se, abriu mão de seus bens, estudou e escreveu incansavelmente, acho que Lúlio está devidamente credenciado a nos puxar as orelhas de vez em quando.

(Publicado na página de Cultura do Jornal Comarca de Garça - 20/03)

quinta-feira, 22 de março de 2012

DANTE ALIGHIERI

O poeta filósofo




“Quem és tu que queres julgar / com vista que só alcança um palmo / coisas que estão a mil milhas?”

Dante Alighieri. Se perguntarmos para a maioria quem foi Dante, pode ser que ouçamos: “aquele cara da Divina Comédia?”. Isso se levarmos em consideração quem ao menos tenha ouvido falar neste brilhante espírito. E temos ainda que considerar que muitos crêem que a Divina Comédia se trate de uma história engraçada. E não é. Assim como Dante não é somente o autor deste clássico universal.
Erroneamente eu também imaginava, mesmo sabendo do grande gênio que ele foi, que Dante houvesse escrito alguns poucos poemas e textos filosóficos, mas que tivesse sido “autor de um sucesso só”. Tive a feliz surpresa de estar enganada quando li Dante Alighieri – O poeta filósofo, livro que resume de modo acertado a vida e as obras deste homem incrivelmente sábio.
Nascido em 1265 em Florença, Dante desde cedo, e mesmo pertencendo a uma família em condições econômicas razoáveis, se envolveu com política e criou caso com a Igreja. Nos dias de hoje Dante seria pejorativamente chamado de mero burguês, mas ainda assim ele foi um dos raros, senão o único de seu tempo a se preocupar com questões como moral, ética e espiritualidade. Isso além de ter sido um exímio lingüista.
Lá pela segunda metade do século XIII, várias casas da Itália (famílias poderosas e influentes) de diversas regiões, disputavam o controle político do país, concorrendo com a intervenção germânica e com a “ditadura” da Igreja. Dante dizia que o clero não deveria se meter em assuntos fora de sua alçada; para governar já existiam os reis e que o papel do Papa deveria se restringir a cuidar das almas e não dos cofres. Por conta disso foi perseguido e expulso de Florença.
Dante começou logo cedo a notar que o conhecimento era o maior tesouro que um homem poderia carregar: estudou ainda na adolescência matemática, dialética, gramática, retórica, aritmética, música, geometria, astronomia, e mesmo adulto, casado e com filhos e mudando de lugar, não matava ainda sua sede de saber. Adquiriu conhecimentos em filosofia, leis e teologia. Era homem público, ocupando importantes cargos, mas foi como filósofo e escritor que o mundo o conheceu. E deveria conhecer mais.
Através dessa leitura, que realmente me surpreendeu, vi que Dante vai muito além do que podemos imaginar. Além da Divina Comédia (fruto de longa pesquisa histórica, teológica e mitológica), Dante nos deixou verdadeiras jóias, ainda mal aproveitadas pela maioria, como Monarchia (ou Monarquia) e O Banquete (ou o Convívio), em que ele realmente banqueteia o leitor com argumentos que enaltecem o pensamento, o amor, a nobreza da alma, a sabedoria, remontando a sociedade medieval e apontando as faltas dos homens como a inveja, egoísmo, vaidade, materialismo e ignorância. Foi com essas obras que Dante conseguiu uma proeza: unificar a língua italiana. Expandida pela península, sob variadas formas regionais (e até rivais) o idioma foi estudado por Dante, que chegou a um “meio termo” para uniformizar o italiano.
Ainda que não fosse sua intenção, Dante, a meu ver, se revelou um autêntico espiritualista – e espírita: uma de suas mais belas passagens narra a morte de forma muito poética, comparando-a a uma nau que aporta no cais, depois de longa, cansativa e enriquecedora viagem. Dante faz perceber que a sabedoria é algo muito simples e que nobreza não tem nada a ver com sobrenome. É um exercício de respeito, desapego, de saber apreciar uma amizade, a natureza e a arte; que conhecer é libertar-se, e que Deus não está no ouro dos altares, mas dentro de nós mesmos.
São obviedades que muitos ainda desconhecem, por isso Dante, assim como outros grandes espíritos como Voltaire, Sêneca, Aristóteles, Lúlio e Erasmus vão ser sempre atuais. Tão óbvio quanto o fato de insistirmos em nossos velhos vícios de sempre, como a prepotência e o julgamento, que, aliadas à falta de conhecimento, são apontados por Dante como os maiores venenos da alma humana.

(Publicado na página de Cultura, do Jornal Comarca de Garça - 22 de março de 2012)

quarta-feira, 7 de março de 2012

A Moreninha

Sei que parece meio clichê, mas desta vez fiquei pensando em um livro que tivesse a ver com o Dia da Mulher. Pensei em grandes poetisas ou figuras históricas, pintoras e cientistas. Florbela Espanca, Tarsila do Amaral, Clarice Lispector, Madre Teresa, Anne Frank, Marie Curie, Frida Khalo, Olga Benário, Cecília Meireles, Joana d’Arc, Maria de Nazaré. São tantas mulheres imortais, fortes, decididas, à frente de sua época, mártires, brilhantes. Falar delas numa data como hoje seria mesmo um clichê.
Então resolvi falar de uma mocinha que também se imortalizou em nossa literatura, uma adorável aborrecente, um tanto infantilizada, caprichosa, mimada, mas muito esperta e apaixonada. Carolina. A moreninha. Protagonista da obra de Joaquim Manuel de Macedo, bem como a maioria das personagens do livro, representa a juventude burguesa carioca do século XIX. Descompromissada, meio cabecinha de vento, mas ainda com uma certa inocência.
O livro foi escrito em 1844 e é tido como o primeiro romance tipicamente brasileiro. Entretanto se houvesse uma categoria além do Romantismo, algo como “Romantismo com pouca água e muito açúcar”, A Moreninha se encaixaria aí. Não que a obra seja enfadonha. Pelo contrário! É uma leitura gostosa, divertida e não deixa de ter o seu lado quase documental ao retratar alguns aspectos históricos como o comportamento da burguesia, as vestimentas, as festas, o pensamento da época.
A trama é bem simples e nos faz criar um paralelo entre a juventude daqueles tempos e a de hoje. Por vezes já quis ser uma espécie de Carolina, feliz e protegida numa redoma de alienação e meras dúvidas juvenis. A história gira em torno de uma aposta feita entre quatro amigos: Augusto, Leopoldo, Fabrício e Felipe, todos estudantes de Medicina. Sabendo que Augusto tinha fama de conquistador e que não conseguia ficar com a mesma moça por mais de quinze dias, seus amigos apostaram que se alguma vez ele se apaixonasse de verdade e ultrapassar os 15 dias, Augusto deveria escrever um romance.
Um dia eles foram convidados por D. Ana, avó de Felipe, a passar o dia em uma ilha de sua propriedade, onde haveria uma festa (geograficamente falando, era a Ilha de Paquetá), e lá Augusto se encantou por Carolina, irmã do amigo. A mocinha, embora negasse até a morte e desdenhasse de Augusto o tempo todo, também se sentiu atraída pelo estudante. Durante a festa, recheada de cenas e diálogos engraçadinhos, os amigos de Augusto espalhavam sua má reputação de “galinha”, o que provocava Carolina, que como uma típica criança espoleta, dava vários foras no moço.
Augusto chegou a confessar à D. Ana que ele se comportava assim e nunca assumia nenhum compromisso porque quando era criança, ele jurou amor a uma menininha que conheceu na praia e com quem trocou um breve (tipo de camafeu), mas que nunca mais a vira e nem soubera o nome. E que ao estar se apaixonando por Carolina ele sentia como se estivesse quebrando sua promessa e traindo a tal menininha.
Entre suspiros, xingamentos, olhares e foras, Carolina e Augusto se gostavam cada vez mais, e a espevitada moreninha acaba fazendo com que ele quebre essa promessa. E Augusto o faz de bom grado, quando descobre a ligação de Carolina com a menininha da praia. Quem leu ou um dia, quem sabe, ler o romance, entende ou entenderá como isso se deu e o que essa “patricinha do século XIX” tinha a ver com essa jura do passado, tão sincera e inocente.
Lembrei-me das grandes mulheres e também da Moreninha no Dia da Mulher, pois por mais fortes que muitas de nós sejamos, um dia fomos menininhas, um dia fomos mocinhas e essas versões de nós mesmas nos trouxeram até aqui, às mulheres que somos hoje.


Cartaz do filme, de 1970

quinta-feira, 1 de março de 2012

Antônio & Cleópatra


Uma rainha caprichosa, fogosa e dominadora e um líder respeitado e influente, mas apaixonado e que diante de sua amante, se porta como um cordeirinho. Intrigas, ambição, desencontros.

Ingredientes que caberiam muito bem em alguma comédia shakespiriana, famosas por seus amores atrapalhados, suas matronas cheias de personalidade e suas futriquinhas pelo poder. Mas neste caso, William tece um drama épico, um dos mais famosos não só da literatura, mas do mundo – já que aqui falamos de pessoas do mundo real, do militar romano e da soberana egípcia, de Marco Antônio e Cleópatra.

Antônio e Cleópatra até que tinham tudo para viverem felizes para sempre, mas como é de costume na história da humanidade, há um detalhe para estragar tudo: política. A peça de tragédia, dividida em 5 atos, foi escrita por volta de 1607, tem algumas passagens mais leves, alguns diálogos por vezes um pouco cansativos por conta do número (exagerado, eu diria) de personagens, mas de repente, a trama ganha impulso e como sempre acontece, William nos prende até a última página, costurando as intrigas políticas com fervorosas conversas apaixonadas.

O desfecho, como muitos devem saber, seria quase digno de um dramalhão mexicano, um final realmente dramático causado por informações desencontradas, meias-verdades e o desespero da rainha ao imaginar que perdeu seu amor para sempre.

Confesso que nunca fui muito afeita a histórias de amor, mas resolvi comprar o livro por dois motivos óbvios: é uma obra shakespiriana e envolve dois grandes vultos de nossa História. Tinha curiosidade em saber como William os havia retratado, e não me decepcionei. Alerto que Antônio & Cleópatra merece uma leitura muito atenciosa, pois em vários trechos temos a sensação de estarmos meio perdidos. Então, a quem for lê-la, recomendo que não faça como eu, que lia no metrô ou durante algumas aulas de matemática. Tive que ler novamente, com calma, pois a trama, embora pareça simples, tem vários detalhes importantes.

Imagino que há quem pense que Cleópatra era somente uma rainha fútil que passava os dias tomando banho em leite de cabra e dando ordens, sendo abanada com penas de pavão por seus criados só esperando Marco Antônio regressar de Roma para satisfazê-la e que, um dia, assim do nada, só porque ficou um pouquinho deprimida, resolveu se deixar picar por um cobra.

Muito pelo contrário; a vida de ambos, juntos ou separados, poderia render grandes obras, e Shakespeare provou isso. Contou, através da relação amorosa da famosa egípcia com o emblemático romano, a ambição de se estabelecer no Oriente um grandioso império, pois Cleópatra era naturalmente uma grande governante. Mas ela viu seus planos serem interrompidos pelos interesses políticos de Otávio Augusto que, em 43 d.C formava, ao lado de Marco Antônio e Emílio Lépidus, o segundo triunvirato do império romano. 

Para começar Marco Antônio era casado, mas ainda assim vivia no Egito com a amante, e como parecia estar definitivamente preso a ela deixando seu lado político a desejar, Otávio Augusto inventa que a esposa de Antônio, Fúlvia, havia morrido. Quando ele volta à Roma para checar a história, Otávio empurra sua irmã Otávia para casar-se com Marco Antônio, mantendo-o assim, mais atrelado ao governo. Sabendo que seu amado fora obrigado a casar-se, Cleópatra manda espalhar a notícia de que ela havia se matado.

O que ela não imaginava é que nessa tentativa, talvez, de fazer a consciência de Antônio pesar ou de simplesmente “fazer um charme”, Cleópatra causou a morte do amante, de verdade. Ainda muito apaixonado e agora muito triste, Marco Antônio comete suicídio. Em seguida quem se mata é Cleópatra, envenenada por uma víbora. Não sei se é impressão só minha, mas esse morre-não-morre me lembrou um pouco Romeu e Julieta. Mas entre os apaixonados de Verona e os amantes imperadores, sou muito mais Antônio e Cleópatra.



Morte de Cleópatra, por Guido Cagnacci, 1652

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

Chaplin por ele mesmo




“Eu continuo sendo apenas um palhaço, o que já me coloca em nível bem mais alto do que o de qualquer político”

Chaplin e um menininho. Quem é que já não teve ou viu essa imagem estampando um quadro, lá pelos anos 80? Um dos clássicos do brega estava lá nos lembrando de um dos clássicos do cinema.
Um dos primeiros contatos que tive com Chaplin, foi vendo esse tipo de decoração em lanchonetes e ainda não tinha ideia do sujeito incrível que estava pendurado ali. Foi na sexta ou sétima série, durante uma aula de História que passei a me interessar por esse adorável “esquisitinho”, quando assistimos a Tempos Modernos. O filme serviu para que entendêssemos a Revolução Industrial, a alienação causada pelo esforço repetitivo e emburrecedor, sobre linha de montagem e a exploração sobre o operariado miserável. Lendo assim, quem ainda não conhece a obra, imagina um drama. Mas esse foi um dos filmes mais engraçados a que assisti até hoje e foi a partir daí que comecei a prestar mais atenção no vagabundo mais querido do mundo.

Via sempre o personagem, mas queria conhecer o homem criador do ícone. Aí, antes que a livraria fechasse, deu tempo de comprar o que considero (assim como foi com o livro sobre os Beatles), apenas uma degustação: Chaplin por ele mesmo. Já havia visto outros filmes e documentários sobre o artista e sua criação, mas nada ainda que partisse do ponto de vista do próprio. Seus amores e escândalos pessoais soam como todos os outros, típicos dos grandes artistas do cinema. O que encanta mesmo é poder conhecer o indivíduo criativo, crítico, irônico, o sujeito que mesmo se virando com pouco legou-nos um personagem que nos fez rir enquanto punha o dedo na cara da burguesia. Mostrava de modo cômico e singelo o lado dos desvalidos.
Chaplin, ao mesmo tempo em que mostrou a crueza do “homem-primata-capitalismo-selvagem” em Tempos Modernos, também nos descortinou o lado mais bonito do ser humano, solidário, de quem se sacrifica pelo próximo sem esperar nada em troca, como em Luzes da Cidade. E isso sem que fosse necessário ele dizer uma palavra. Era capaz de nos arrancar risadas e nos dar um nó na garganta com a mesma facilidade.


Charles Spencer Chaplin (16/4/1889 – 25/12/1977) nos lembrou no papel de (falso) ditador que “mais do que máquinas precisamos de humanidade. Mais do que inteligência precisamos de afeição e doçura. Sem essas virtudes a vida será de violência e tudo estará perdido”. E até hoje convivemos com essa necessidade. Almas como ele enxergam com maior sensibilidade as carências do ser humano, bem que tentam avisar dos possíveis desastres, mas morrem antes que alguém lhes leve a sério. E ele tinha consciência disso, quando disse: “Que eu seja um comediante – mas um comediante que pensa”. Embora não gostasse muito de pompas, foi condecorado Sir, pela Rainha Elizabeth II, em 4/3/75. Essa honraria deveria ter sido cedida em 59, não fossem as suspeitas de que ele pendesse para o comunismo. Ele realmente não ligava. Usava sua estatueta do Oscar de 29 como peso de porta.
Carlitos nos fazia rir, mas Charles era um homem sério. Pai severo, mulherengo, frio para os negócios, judeu torto, amargurado e um tanto ressentido. E daí nasceu o sujeito que acreditava no poder da imaginação, aquele que afirmava que uma boa obra cômica pudesse ser tão grandiosa quanto a mais famosa das tragédias gregas, cria na força da beleza e da poesia. Definitivamente uma vida imperdível.

Mencionei a breguice dos quadros de Chaplin com o menino, nas lanchonetes oitentistas. Pois bem. Tenho um quadro com uma cena do discurso d´ O Grande Ditador (o carinha que fez a moldura já indagou “por que o Hitler?”). Como defesa posso alegar que cenas de clássicos imortalizadas em quadros até podem não ser bregas. São vintage. Coisas de nossos tempos modernos...

Chaplin por ele mesmo
Editora: Martin Claret
Páginas: 160

02 de novembro de 2011 (Jornal Comarca de Garça - Cultura)
Crônicas Escolhidas - Lima Barreto




Não pretendo fazer coisa alguma pela pátria, pela família, pela humanidade. De resto, acresce que nada sei de história social, política e intelectual do país; que nada sei de geografia, que nada entendo de ciências sociais (...) vou dar um excelente deputado

Um dos primeiros, senão o primeiro militante da Literatura Brasileira, Afonso Henriques de Lima Barreto deixou este mundo muito cedo, aos 41 anos, e como vários gênios só foi devidamente reconhecido depois da morte.
Mulato, nascido no Rio de Janeiro numa época em que o Brasil havia recentemente libertado seus escravos, ele conheceu as dores do preconceito justamente no meio em que queria se realizar e usar para denunciar as injustiças sociais: entre os escritores. Ele cresceu vendo os bons exemplos dos pais Joaquim, que nascido escravo, tornou-se tipógrafo d’ “A semana ilustrada”; e Amália, filha de escravos, era professora primária. Lima devorava livros, mas não terminou os estudos por conta do peso que lhe caiu aos ombros: os pais morreram e ele teve que dar conta do sustento de quatro irmãos. A loucura que matou seu pai parece ter impregnado o jovem Afonso, que depois de um tempo passou a sofrer com crises de profunda depressão, reforçadas pelo alcoolismo. Apesar disso, ainda foi aprovado em concurso público para o Ministério da Guerra e marcava presença na imprensa como colaborador e jornalista em dezenas de jornais e revistas. Com isso ele conseguia manter a família. E mesmo com as recaídas, ele seguiu escrevendo e chamando a atenção dos críticos, incomodando os parnasianos, sempre colocando muito de si mesmo em seus folhetins e romances.

Mas como santo de casa não opera milagres, Lima só conseguiu publicar seu primeiro livro de ficção, estreando oficialmente como escritor, em Portugal, com Recordações do Escrivão Isaías Caminha, uma crítica severa à sociedade brasileira, altamente preconceituosa e hipócrita. E disso Lima Barreto entendia bem. Atuante jornalista, pendendo para a militância contra a Velha República, inovou a nossa literatura por fugir às regras do Parnasianismo vigente, com uma linguagem mais coloquial, exaltando figuras e costumes populares, sempre com um tom de denúncia, mordaz e ao mesmo tempo doída. Por essas razões esse, que é um dos meus “escrivinhadores” favoritos, sentiu-se um patinho feio na literatura, encarando os olhares de desdém de seus colegas, que o classificavam de relaxado e que nunca lhe deram uma chance na Academia Brasileira de Letras.
Lima Barreto morreu tentando uma vaguinha na ABL, cada vez mais amargurado, colecionando cada vez mais críticos-inimigos, lamentando que esses preconceituosos escritores estivessem fazendo da literatura não uma arte, mas algo mecânico. Seu sonho, ao contrário, era usá-la como arma para denunciar as falhas da nossa sociedade e dos governos, renovar os velhos costumes; para ele o escritor tinha essa obrigação, o artista deveria ter uma função social. Autor de clássicos tardiamente reconhecidos como Triste fim de Policarpo Quaresma, Clara dos Anjos, O homem que sabia javanês, e Os Bruzundangas, Lima me encantou primeiramente por suas crônicas e longe, bem longe (anos-luz) de querer parecer presunçosa, mas vi um pouco de mim em muitos de seus escritos. Assim como Lima (jornalista, sonhador e com crises de desânimo) eu acredito na obrigação de todo escritor de ao menos tentar ter sua função social, de usar as palavras e seu conhecimento para denunciar, cutucar, provocar, incomodar, fazer notar quão ridículos são certos costumes e quão corrosivos são os preconceitos.

Muitos diriam que Lima Barreto entregou-se facilmente (morreu pobre, esquecido e encharcado de álcool, praticamente um indigente) e que se tivesse insistido mais um pouco até pudesse ter sido reconhecido em vida. Não vou bancar sua advogada, mas tendo nascido mulato num Brasil que, mesmo depois da abolição da escravatura, ainda conservava mentalidade colonial, e cercado por escritores pomposos e críticos cruéis, Lima foi longe. E poderia sim, ter ido além. Mas li em algum lugar que os gênios à frente de seu tempo, incompreendidos que são, morrem cedo, enlouquecem, se matam por não se sentirem pertencentes a este mundo. Lima talvez se encaixasse melhor nos dias de hoje, material para suas denúncias não faltaria.

Crônicas Escolhidas – Lima Barreto Editora: Ática - Páginas: 158
Onde encontrar: nos sites mais populares de compra e venda, entre 5 e 8 reais ou textos avulsos e gratuitos em www.dominiopublico.gov.br

20 de outubro de 2011 (Jornal Comarca de Garça - Cultura)

A vida feliz



O que faz você feliz? Tá, parece aquela propaganda de supermercado, mas essa é uma das perguntas mais básicas que tem acompanhado a humanidade desde quando ela tomou consciência de si mesma. Cada área do conhecimento tem uma resposta ensaiada, pronta para satisfazer os mais conformados. Mas foi curiosamente a Filosofia – a arte de pensar e nos fazer ter sentimento de culpa – quem chegou mais perto de esclarecer os caminhos para a felicidade, ou pelo menos para algo do gênero. Machado de Assis já dizia que não há felicidade. Só momentos felizes. Concordo com ele, mas também não posso deixar de concordar com um outro senhorzinho adorável, um contemporâneo de Jesus que tentou levar Nero para o bom caminho, mas como pudemos perceber, não conseguiu.

Lucius Annaeus Seneca, ou só Sêneca, foi um dos pensadores mais gente fina de toda a história da filosofia. Ele me pareceu meio familiar, como um avô muito legal e experiente, sempre disposto a ensinar, mostrando que para se atingir o estado de felicidade basta uma coisa: personalidade. Em a Vida Feliz (que não tem nada a ver com livros “porres” de auto-ajuda), ele aponta meios para se chegar a uma existência no mínimo satisfatória com um preceito bem simples: fujamos daquilo que o senso comum dita, o que os demais pensam não é lei. Eu vejo Sêneca não só como um filósofo gente boa, mas como alguém que era ao mesmo tempo simples e genial. Alguém que eu adoraria ter em meu círculo de amizades.

Segundo ele, o vulgo sempre errava, a massa seguia o conformismo e não usava a razão (isso lembra uma frase rodriguiana que dizia que toda unanimidade é burra). Logo, para encontrarmos a felicidade deveríamos tomar distância da multidão. E ele ia na contra-mão do que a massa faria: nascido um homem de posses e de família ilustre, ele preferia a água ao vinho, se alimentava frugalmente e dormia em um colchão simples. Ele não condenava o conforto nem a riqueza, mas sim o mau uso desses recursos. Avarento? Talvez sim, talvez não, mas para ele isso também era a prática da vida feliz. Além da simplicidade, pregava ainda a apreciação da alma no lugar do pré-conceito, o fim da ostentação e da superficialidade, o arrependimento sincero, a observação da natureza, a busca pela tranquilidade da alma em detrimento dos prazeres frívolos (prática chamada de ataraxia), o exercício da racionalidade, não cobiçar um bem ou um dom que não se tem, não obedecer aos impulsos, buscar uma vida virtuosa, não se deixar abater pela má sorte, pois o único modo de nos libertarmos da escravidão é sendo indiferentes a essa tontice de “sorte”.

Foi classificado como um estóico, pois esses são preceitos típicos dessa linha filosófica. Ele via os males da sociedade e para ele a desonra era um dos maiores, bem como a traição de nossas próprias convicções. Isso tudo parece bem óbvio, mas a obviedade maior está no fato de que para muitos, isso não passa de teoria. Para os leitores mais religiosos, o caminho da felicidade, claro, é unicamente Deus. E Sêneca nunca misturou seus pensamentos com religião, porém sua doutrina é totalmente do bem, lembrando muito com o que Jesus pregava. Inclusive, mesmo sendo da época de Cristo, eles nunca se encontraram e Sêneca nunca fez menção alguma sobre ele em seus escritos. Mas sabe-se que houve encontros e trocas de correspondências entre o filósofo e o apóstolo Paulo. Ele também desenvolveu as ideias do fluxo de energia e do princípio ativo que se referiam à regra geral, que posteriormente tornou-se famosa: Causa e Efeito ou Ação e Reação.

Intelectual, orador, advogado e senador, foi também preceptor do jovem Nero, enquanto mantinha paralelamente uma vida de escritor, produzindo muitos textos satirizando os poderosos. Nero tornou-se imperador ainda adolescente e Sêneca era para ele um conselheiro, tentando guiá-lo para uma política justa e mais humana. Mas sua índole já estava manchada e a boa influência de Sêneca sobre o imperador durou pouco; Nero foi revelando-se ambicioso, caprichoso, tirano e corrupto. Sêneca passou então a ser acusado de afrontar o governo e, sem quem o defendesse (nem os amigos), caminhou para a morte. Sêneca se viu obrigado a cortar os pulsos. Até a História se mostra um pouco injusta para com ele, acusando-o de ser rico e tê-lo sido pela vida toda, pregando a humildade só da boca para fora. Mas sabe-se que riqueza não é pecado. Pecado é promover através dela injustiças e vergonhas, é fazer da opulência um estilo de vida. O fato é que as injúrias dirigidas a Sêneca vieram daqueles que o invejavam e o viam como inimigo.
Espírito nobre, prosa cativante, mansidão, ousadia; era metafórico, irônico, humano. Podem não ser elementos compatíveis com uma vida feliz, mas são, sem dúvida, a maior riqueza de um homem.

A vida feliz
Editora Escala
Páginas: 126

27 de outubro de 2011 (Jornal Comarca de Garça - Cultura)
Máximas e Reflexões



Nossas virtudes não são, geralmente, senão vícios disfarçados”, “A pressa em pagar um favor é uma espécie de ingratidão” ou “Se há homens cujo ridículo nunca se revelou, é porque não se procurou bem”. À primeira vista essas podem parecer apenas frases espirituosas de um velho rabugento. Espécie para mim, das mais divertidas. E sábias, claro. Sabedoria e diversão não têm que andar separadas. E somente alguns poucos sábios como La Rochefoucauld misturavam essas artes tão bem – fazer rir, refletir e descobrir em nós mesmos os nossos pontos mais mesquinhos e ridículos. Máximas e Reflexões é um guia perfeito para isso.
François (duque) de La Rochefoucauld e príncipe de Marsillac, nascido e falecido em Paris (1613 – 1680), foi um aristocrata que dedicou-se à carreira militar, envolvendo-se em intrigas com membros poderosos da Igreja, conspirava contra a corte e participou da guerra civil francesa de 1648/1653. Nesse tempo foi gravemente ferido nos olhos, comprometendo, com isso, sua carreira. Assim ele, que já possuía um espírito ácido e desencantado com a humanidade, passou a dedicar-se aos encontros literários, onde destacava-se nos salões pelas suas máximas morais e reflexões.

Misturando seus discursos com um “quê” de entretenimento, La Rochefoucauld, deu origem a um gênero literário, o das máximas e epigramas, em que tecia os mais corrosivos comentários a cerca da natureza dos homens. Para ele a humanidade não conhece a bondade, as pessoas parecem agir com solidariedade quando por trás dessa máscara existem apenas interesses e hipocrisia. Segundo ele e sua alma cáustica, o que move as ações humanas são o amor-próprio, a vaidade e a necessidade de admiração e adulação – características impregnadas na nobreza de sua época. E ainda na “nobreza” da nossa.

De certo modo, pessimistas como La Rochefoucauld têm seu encanto. Mark Twain, o rabugento americano, foi um deles; condenava a “maldita raça humana” à categoria de pobres coitados imbecis que deveriam observar e aprender com os animais, que são bem mais sinceros e sábios que nós. Já o rabugento francês, desiludido com as pessoas, até tivesse tentado encontrar algum traço de bondade e desapego nos homens, mas não deu a sorte de encontrá-los, pelo menos não em seu meio. Mas ainda assim a herança de seu gênero literário eternizou-se e ainda nos faz muito sentido. Segundo ele, gratidão é algo que os homens vão morrer desconhecendo.
Sua obra inspirou outros “corações negros” como Friedrich Nietzsche, que tinha em Máximas e Reflexões um de seus livros favoritos.

La Rochefoucauld não se travestia de rebelde, não queria parecer revoltado e nem seria hoje confundido com um adolescente pirracento que defende causas de acordo com o modismo. Ele falava com propriedade das falhas humanas baseado naquilo que ele via e vivenciava nas cortes, nas ruas e entre o clero, lugares onde se tramavam constantemente; o contexto histórico, social e religioso de seu tempo talvez justifique o temperamento do duque que via na moral um ponto de luz a ser lançado na sociedade. E sobre si mesmo, afinal ele, tomado pela vaidade e pelas paixões e entregue ao ostracismo, teve um final de vida deprimente e quase solitário.

Máximas e Reflexões
Autor: La Rochefoucauld
Editora: Escala
Páginas: 146

13 de outubro de 2011 (Jornal Comarca de Garça - Cultura)
Amor de Perdição



A extremada paixão portuguesa. Casos amorosos enrolados vividos pelo próprio autor. Inspiração em Shakespeare. Ingredientes que fizeram de Amor de Perdição um dos símbolos mais belos da literatura lusitana. Escrita em 1862, numa fase em que o romantismo contava histórias de amores desmedidos, a obra – uma autêntica novela portuguesa – segue popular até hoje.
Os nomes Amor de Perdição e Camilo Castelo Branco me marcaram, pois o primeiro contato que tive com as letras d´além mar foi lá pelos anos 90, através deste livro e de alguns outros estudados nas aulas de Português (da professora Vera Sganzela) no Monsenhor Antônio Magliano. Foram anos excelentes, foram aulas ótimas (e falo como aluna, não enquanto filha), foram obras inesquecíveis. Hoje me pergunto se um adolescente leria algo assim de bom grado. A obra foi lida para que conhecêssemos um pouco sobre literatura e autores portugueses que provavelmente nos apareceriam em alguma prova de vestibular; fizemos prova e os discutimos oralmente, mas o que era para ser um trabalho da disciplina acabou virando uma boa lembrança.

A inspiração shakesperiana do escritor luso vem do fato de o casal protagonista, Simão Botelho e Teresa Albuquerque pertencerem a famílias rivais. O cenário divide-se entre as cidades de Viseu, Coimbra e Porto e os jovens mantêm um namoro às escondidas. Por caminhos tortos as famílias ficam sabendo dos planos dos jovens e o pai da moça tenta casá-la com um primo, tal como em Romeu e Julieta. Teresa resiste e acaba sendo internada em um convento. Assim como o Montecchio de Verona, Simão arranja uma briga com o primo da amada e seus criados e acaba por refugiar-se na casa de um ferreiro, João da Cruz, conhecido (e devedor) de seu pai. Mariana, a filha do ferreiro apaixona-se por Simão. Sai a influência de William e entra o complicado triângulo amoroso de Castelo Branco.

Apesar das investidas incisivas de Mariana, Simão troca correspondências com Teresa e mais tarde tenta raptá-la do convento. Durante a tentativa ele, sem querer, mata o primo da amada, sendo então preso e condenado à forca. Mas como seu pai era um homem muito influente (e daí será que nasceu o “jeitinho brasileiro” para resolver as coisas?) ele conseguiu com que seu filho, no lugar da pena de morte, passasse 10 anos exilado na Índia. Só que o velho não fez isso por amor a Simão, mas por não querer ter no nome da família a mácula de uma condenação à morte.
E como nessas histórias o destino é um grande sádico, o porto de onde sairia o navio levando Simão ficava próximo ao convento onde Teresa estava enclausurada. A moça soube da partida e viu o embarque. Ela, que já sofria de tuberculose, entregou-se de uma vez e morreu. Poucos dias depois, em alto-mar, doente e delirante, morre Simão. E a devotada Mariana? A filha do ferreiro, parte mais fraca do triângulo, mas nem por isso menos apaixonada, ao ver lançarem o corpo do moço ao mar, atira-se nas águas para afundar ao lado dele.

É claro que contando assim, a dramaticidade pode parecer pouca, mas o romance é todo costurado com momentos ainda mais carregados de amor e sofrimentos; os pais de Simão que mais ligavam para a honra da família do que para os conflitos do filho, a profunda melancolia de Teresa, trancada sob a vigilância ferrenha das freiras e que vai, literalmente, morrendo aos poucos de saudades; Mariana que, de tanto adorar Simão, chega a ficar demente, o ferreiro que foi assassinado e a filha que vendeu tudo o que lhe restou para viver em função de seu objeto de desejo; o primeiro e único beijo de Mariana dado em Simão, já morto... Praticamente todos mortos. Dos apaixonados só restaram as cartas.
Para os mais realistas ou racionalistas, isso pode soar muito piegas. Para os mais românticos, trágico. Para quem transita entre o racional e o passional o desfecho é perfeito: os melhores casos de amor são aqueles que não dão certo.


06 de outubro de 2011 (Jornal Comarca de Garça - Cultura)
O diabo coxo



Aparentemente despretensiosa, levemente cômica e muito simpática, essa obra de Guevara, na verdade é uma caçoada à sociedade espanhola dos anos de 1600.

Assim como muitos, eu só tinha ouvido falar no Guevara guerrilheiro, aquele político cubano-argentino revolucionário de sonhos utópicos que depois de morto virou ícone pop do mundo capitalista. Mas foi fuçando na prateleira de uma livraria que eu encontrei o Guevara espanhol. Luis Vélez de Guevara, sevillano nascido em 1579, novelista e dramaturgo do auge do Barroco, autor de várias obras dramáticas e cômicas, que costurava temas históricos e heróicos com romances populares e tragédias amorosas.

Não sei ainda se o que mais me chamou a atenção foi o nome do livro ou do autor. O caso é que levei para a minha estante uma história ao mesmo tempo leve e impertinente. Mas uma impertinência que provoca a aponta o ridículo de uma sociedade. El diablo cojuelo foi o último feito de Guevara, em 1641, mas assim como todo clássico, segue bem atual. Aqui, o diabinho, libertado de uma redoma pelo estudante Cléofas, leva seu benfeitor por um passeio por várias cidades espanholas, mostrando-lhe o comportamento das pessoas, toda a falsidade reinante e a hipocrisia que delas aflora. Sentimentos pequenos que só servem para atrasar e estacionar o progresso daquela gente. Mais atual impossível. E a meu ver, ainda bem mais atual do que Ernesto, o Guevara que preferiu as armas às penas.

O diabo coxo
Autor: Guevara
Editora: Escala
Páginas: 90

22 de setembro de 2011 (Jornal Comarca de Garça - Cultura)
Muito barulho por nada



Impossível ficar sem falar de William Shakespeare por muito tempo. Todo apaixonado se sente assim, incompleto se não menciona de vez em sempre o objeto de sua adoração. E como já disse outras vezes, sou irremediavelmente enamorada por esse inglês, cuja existência ainda é posta quem dúvida por alguns, mas para mim, Stratfordon-Avon não poderia ter dado melhor presente ao mundo do que William.

O autor passeia confortavelmente entre drama, tragédia, romance e comédia e trouxe à luz alguns dos personagens mais marcantes da literatura universal, fora os diálogos ora profundos, ora mordazes, ora engraçados e doces.
Esse é o caso de Muito barulho por nada, onde – assim como em As alegres matronas de Windsor, A megera domada e o Mercador de Veneza – as falas são ágeis, irônicas e divertidas. São verdadeiros duelos, ou como alguns estudiosos dizem, combates entre esgrimistas das palavras. E certamente essa é uma das razões pelas quais tenho tanto amor por William. O raciocínio rápido das personagens para dar respostas inteligentes revela alguns traços da personalidade dele mesmo, creio. E pessoas inteligentes que são ao mesmo tempo refinadamente divertidas são, sem dúvida, as mais interessantes.

Muito barulho por nada é uma das comédias mais famosas e queridas do bardo. Nela, Beatriz e Benedicto, totalmente avessos ao casamento, se vêem em situações em que sua paixão se mostra descaradamente visível, embora eles jurem por tudo o que há de mais sagrado que eles não se suportam.
Enquanto o ácido casal teima com isso, a história conta com uma pitada de maldade e inveja por parte de Don John. Tudo começa quando o príncipe Don Pedro, Don John (seu irmão mau caráter) e os nobres Claudio e Benedicto vão descansar de uma guerra na Vila Messina, onde uma grande festa os aguarda, regada a bailes, diversão e paixões. São recepcionados pelo nobre Leonato, cuja filha Hero é o amor de Claudio. O jovem casal combina o casamento e armam um esquema para unir os turrões Benedicto e Beatriz. Don John, que tem inveja de Claudio, monta uma cena para faze-lo crer que Hero a trai com outro homem. Claudio cai no embuste e humilha a moça, desmanchando o casamento. A noiva desmaia e Leonato conta a todos que a filha morreu. Logo o inferninho montado por John é descoberto e Leonato oferece a mão de uma prima de Hero a Claudio – é incrível como tudo se resolvia dando a mão dos outros em casamento – e ele, ainda arrasado e de luto, aceita. Mas o que não se sabia é que Leonato tinha contado uma mentirinha (que não será revelada aqui). E quando Beatriz e Benedicto, o casal (às avessas) mais interessante, percebem as combinações para junta-los, é tarde: os encantadores falastrões já estão apaixonados.

A peça deu origem a um filme igualmente delicioso, em 1993. Muito barulho por nada/Much ado about nothing, tem roteiro e direção de Kenneth Branagh, que também faz o charmoso Benedicto. O filme, que conta com elenco bem interessante, foi o mais aplaudido no Festival de Cannes daquele ano. Prova de que Shakespeare é realmente imortal, aplaudido, encenado e filmado em qualquer época, em qualquer lugar.
O verdadeiro gênio continua vivendo através de suas personagens e de seus brilhantes diálogos e suas frases que se aplicam não apenas às suas histórias, mas às nossas. Como diz Benedicto, “todo mundo é capaz de dominar uma dor, exceto quem a sente”. E não é? William sabe traduzir, como poucos, os nossos muitos barulhos por nada de todos os dias.

Muito barulho por nada
Autor: William Shakespeare
Editora: L&PM Pocket
Páginas: 150

15 de setembro de 2011 (Jornal Comarca de Garça - Cultura)
O mundo acabou!




Rural Willys. Pente Flamengo. Cobertores Parahyba. Aparelho de TV Colorado. Monark Pneu Balão, “Fenemê”. Vemaguet. Crush. Drops Dulcora. Cigarros Mistura Fina. Boneco Mug. Glostora. Emulsão Scott. Calças Far-West. Nomes que para muita gente da minha geração podem soar como totalmente desconhecidos, para mim soam altamente familiares. Não, nunca menti a idade. Tenho quase 32, mas como sempre tive mania de passado, conheço todas essas coisas e outras mais que não fizeram parte da minha história, mas que ainda assim, me deixam nostálgica.
Minha avó tinha uma coleção de revistas Seleções – as mais “novas” deviam ser dos anos 70, e eu tinha paixão por aquelas páginas, especialmente as de propaganda. Certamente por isso gostei tanto desse livro.

De autoria do jornalista e escritor mineiro Alberto Villas, o livro nos leva por um verdadeiro passeio pelos anos 50 e 60, através de passagens de sua vida, mas que se repetem na vida de muitos cinquentões de hoje. A viagem é tão boa, tão leve e por vezes tão engraçada que quando nos damos conta, já acabamos de lê-lo e o que nos resta é um apanhado de boas memórias, uma nostalgia e uma pena porque esse mundo realmente acabou.
Hoje os apelos são outros, as propagandas estão mais incisivas, apesar de muito inteligentes. Mas o livro nos arranca risadas ao relembrar de como a publicidade daqueles tempos incitavam a uma certa dose de “terrorismo de mãe”: era comum dizer que se as crianças não tomassem a Emulsão Scott, iam ficar nanicas e burras.

Hoje talvez isso fosse inadmissível, mas funcionou naqueles tempos e ninguém se revoltou por causa desses dizeres. A impressão que eu tenho é que antes não havia tantos melindres como hoje. As crianças eram menos frescas, eram criadas com mais simplicidade, com mais doses diárias de realidade, com mais comedimento, com mais “nãos”, mas nem por isso com menos carinho. Vivemos na época do politicamente correto, mas as caretices continuam as mesmas. Não pode falar para a criança que ela vai crescer burra, mas pode mostrar a bunda no comercial. Onde está a modernidade nisso?

O mais curioso é que esse livro teve o poder de me transportar para uma época que eu não vivi! E ainda senti saudades daquilo tudo! É engraçado ver como as novidades daqueles dias, que para nós hoje já são mais que ultrapassadas, eram vistas. O Brasil estava em franco processo de industrialização, os movimentos dos intelectuais eram notórios, a americanização começava a invadir a moda, a música, as gírias e ainda assim tudo parecia mais inocente, mais cordial, menos estressante. De certo modo, o livro não deixa de ter seu conteúdo histórico, pois retrata os costumes e o modo e vida de toda uma geração de brasileiros, não importando se esses brasileiros falam de Belo Horizonte ou Brasília, como o autor, ou dos cafundós do interior de São Paulo, como minhas tias, ou como pais e avós de muitos de nós.

É claro que muitos hão de se lembrar que aqueles tempos também podem remeter a dias difíceis, como a ditadura, mas o propósito não é esse. Pelo contrário. O Mundo acabou serve como um respiro, um momento para deixar de lado as pequenas agruras do século XXI e ter alguns minutos de delicadeza, de se deliciar com amenidades, de relembrar dos pequenos, e até modestos, sonhos de consumo dos tempos em que os jovens andavam contentes da vida quando desfilavam com um Bamba.

O mundo acabou
Autor: Alberto Villas
Editora Globo
Páginas: 308

01 de setembro de 2011 (Jornal Comarca de Garça - Cultura)
Libertinagem & Estrela da manhã



Teresa, você é a coisa mais bonita que eu já vi até hoje na minha vida, inclusive o porquinho-da-índia que me deram quando eu tinha seis anos” (Madrigal tão engraçadinho)

Um delicioso retorno às coisas mais simples e, no entanto as mais despercebidamente importantes da vida. As palavras de Manuel Bandeira têm esse poder.
Tardei um pouco a conhecê-lo, mas como tudo no mundo tem um motivo, Bandeira me apareceu na hora certa. Se ele tivesse me caído às mãos antes, talvez na adolescência ou nos meus vinte e tantos anos, talvez eu não o compreendesse e o visse como um tiozinho que escrevia coisas que qualquer um escreveria se dispusesse de tempo para ficar de olho nas coisas e nas pessoas. A imaturidade, inclusive a literária, nos leva a cometer tais pecados.

Mas Bandeira começou a morar em minha estante no tempo certo. Alguns anos, alguns tropeços e muitos textos depois, adquiri sensibilidade suficiente para sacar que a chave do brilhantismo é a simplicidade, é saber captar no trivial, sentimentos que julgamos distantes de nós. Vai ver que é porque somos ocupados demais para contemplar.
Pequenos flashes do cotidiano que passam sem ser notados, pequenas bobeirinhas diárias que nos provocam um sorriso no canto da boca, o corriqueiro, o banal e até o ordinário; sem essas coisinhas nossa travessia não teria graça. Bandeira, com seu jeito tão característico resgata essas miudezas. Certa vez ouvi uma frase, aplicada ao teatro que diz que “o menos é mais”. Essa afirmação tão “menos” por si só é tão sábia e é a cara de Bandeira.

Manuel Carneiro de Souza Bandeira Filho (Recife, 1886 – 1968) compôs a leva de artistas da Semana de 22, sendo um dos maiores expoentes da literatura moderna. Viajando desde cedo, cursou Humanidades, mudou-se para São Paulo (onde iniciou, mas não concluiu Arquitetura); atacado pela tuberculose foi passar uma temporada em Campos do Jordão e de lá foi à Suíça internar-se. De volta ao Brasil, iniciou-se nas letras, foi nomeado inspetor federal de ensino e tornou-se conhecido do público graças às boas críticas que recebeu. Foi professor de Literatura e eleito membro da ABL (Academia Brasileira de Letras), sendo ainda crítico literário e de artes e tradutor.
E, no entanto, com tanta riqueza cultural, ele foi buscar na simplicidade e no “invisível” a fonte de seus escritos. Alguns românticos, doces, quase inocentes, alguns como se fossem ditos pela boca de uma criança, mas vários com uma certa ironia, ou talvez melancolia. Mas uma melancolia com açúcar (misturada com um pouquinho de água parnasiana?):

Andorinha lá fora está dizendo: - ‘Passei o dia à toa, à toa’.
Andorinha, andorinha, minha cantiga é mais triste! “Passei a vida à toa, à toa”.

Autor do conhecidíssimo “Vou-me embora para Passárgada”, Bandeira me cativou por duas práticas que prezo demais no universo da poesia: fez uso do soneto, forma clássica, e particularmente a mais bela de poema, e, embora tivesse facilidade com a métrica ele também produziu muitos versos livres. Libertinagem & Estrela da manhã (que é a reunião de dois livros) é recheado deles. Versos livres são um bálsamo para quem como eu, tem pavor de rimas gratuitas.
Quem precisa ficar se preocupando com rimas? Muitas delas se tornam irritantes porque acabam se tornando o mote do poema. Mas isso é feito por quem tem muito que aprender e nem desconfia.

Ser simples é o mote. E a beleza será encontrada por seus pares. Simples assim. Como a vida é e quase ninguém enxerga.


Libertinagem & Estrela da manhã
Autor: Manuel Bandeira
Editora: Nova Fronteira
Páginas: 112

25 de agosto de 2011 (Jornal Comarca de Garça - Cultura)

O Livro de Ouro da Mitologia – Histórias de Deuses de Heróis - (A idade da fábula)




Na semana anterior, quando citei mestre Osho falando sobre as diferenças entre história e mitologia, acabei me prendendo em uma de suas passagens sobre a existência ou os “mitos” de Jesus, Mahavira, Krishna e Buda: “Foi esse o motivo do desentendimento entre Freud e seu discípulo Carl Gustav Jung (...) Freud é muito pragmático; Jung é muito mais poético. Jung confia enormemente na mitologia e não confia na história (...) Todas as mitologias do mundo estão mais próximas da verdade do que as suas chamadas histórias. Mas é a história que ensinamos a nossos filhos, e não a mitologia”.

Isso me levou imediatamente a uma outra obra belíssima, daquelas que não devem ser lidas apenas uma vez na vida, mas sempre, para mergulharmos e entendermos todos esses elementos da mitologia greco-romana que ainda estão muito presentes em nossa cultura e em nosso cotidiano, ainda que não percebamos.

É claro que a história, área que amo, tem seu inegável valor; tudo é história, a humanidade nada seria sem ela, mas como bem disse Osho, muitas vezes a história só se lembra dos momentos de dor, só se recorda daquilo que não deu certo, só cita os déspotas, os usurpadores, os algozes das sociedades ao passo que os mansos, a quietude, a prosperidade e a beleza ficam eclipsados pelo caos. A mitologia também nos mostra guerras, violência, crueldade, inveja, conflitos, mas traz à tona sentimentos sublimes como amizade, compaixão, contemplação, fidelidade, honra.

Expressões e conceitos que usamos comumente derivam da mitologia: toque de Midas, afrodisíaco, erótico, voto de Minerva, psique, narcisismo, cronológico, titânico, abrir a caixa de Pandora, ninfeta, trabalho hercúleo, bacanal, o pomo da discórdia, tendão de Aquiles, complexo de Electra. E muitos repetem essas palavras, até as usam de modo equivocado e nem desconfiam de sua origem, das belas histórias por trás delas.

O surgimento da mitologia se perde no tempo, sua autoria é desconhecida já que ela foi sendo transmitida oralmente para as gerações através dos séculos, mas o fascínio que ela causa é atemporal. Os romanos, com toda a sua cultura própria, herdada ou absorvida, se apaixonaram pelos mitos gregos e os adaptaram, dando nomes diferentes aos mesmos deuses, mantendo suas essências maravilhosas.

Thomas Bulfinch (Estados Unidos, 1796 – 1867) reuniu nesta obra 50 histórias encantadoras que misturam guerras, aventuras e paixões que, numa primeira análise, podem parecer absurdas ou fantasiosas demais – para as mentes deficitárias – mas que devem ser lidas e relidas por quem tem sede de conhecer o mundo, outros conceitos e uma cultura tão apaixonante quanto a greco-romana. Muito do que temos e somos (as partes boas a aproveitáveis) devemos a ela.

Se as religiões pagãs não sobreviveram ao tempo, ao menos as sagas de seus protagonistas dão mais beleza e profundidade às artes, como literatura e pintura (vide a capa do livro que reproduz um pedacinho da minha tela favorita, O nascimento de Vênus, do brilhante renascentista Sandro Boticcelli). O Livro de Ouro da Mitologia está longe de ser um dicionário ou um almanaque, embora as consultas possam ser feitas aleatoriamente. A meu ver é uma bíblia, nem tanto no sentido religioso, mas como leitura obrigatória e permanente para quem não se sacia facilmente com qualquer explicação sisuda sobre a origem do universo, dos continentes, dos fenômenos da natureza, das paixões e das desgraças humanas. E ainda que nada disso seja verídico, pelo menos despertam em nós a imaginação e a contemplação.

Bulfinch traz ainda monstros que caíram em nossas graças, como a Esfinge, Centauro, Quimera, Grifo, Pégaso, Salamandra, Harpia, Basilisco, Unicórnio e Fênix, além das divindades dos elementos e as sibilas. Utiliza poemas épicos para explicar alguns personagens, citando trechos de artistas influentes como Safo, Ovídio, Homero, Virgílio e Simônides. Cita divindades egípcias como Osíris e Ísis; lembra a mitologia oriental (hinduísmo e budismo) e os mitos nórdicos de Thor, Lóki, Odin, as valquírias e o palácio de Valhala, bem como a mitologia teutônica ou germânica, runas, elfos e druidas.
Toda essa grande colcha de retalhos é costurada com a mais bela filosofia e pura arte, sendo uma peça que não deve deixar a cabeceira dos estudiosos, curiosos e apaixonados.

O Livro de Ouro da Mitologia – Histórias de Deuses e Heróis (A idade da fábula)
Autor: Thomas Bulfinch
Coleção A obra-prima de cada autor – Edição ilustrada
Editora: Martin Claret
Páginas: 472

18 de agosto de 2011 (Jornal Comarca de Garça - Cultura)