terça-feira, 23 de setembro de 2008

Qual é a graça de anular o voto?

Qual é a graça de anular o voto?
Acabo de ler em um tópico de uma comunidade orkutiana garcense (como de costume) a frase “Nulo neles!”, em resposta à proposta das pessoas se manifestarem sobre as nossas eleições. Daí me veio essa pergunta: qual a graça de anular o voto? Será que as pessoas realmente acreditam que essa é uma maneira de elas demonstrarem descontentamento com a política? Será que não existe outro modo de fazermos isso sem ter que apelar para um artifício tão bobo?

Eu entendo que a urna, assim como o papel, aceita tudo, e que o sistema democrático nos dá essa liberdade de fazermos do nosso voto o que bem entendermos, mas convenhamos, qual o sentido em se dar o trabalho de se sair de casa em mais um sagrado e entediante domingo, enfrentarem uma fila, chegar diante da urna e anular o voto, ou votar em branco? Não seria isso um desperdício de tempo e energia? Alguns dizem que votar nulo ou em branco é uma forma de protesto, para que os políticos vejam que o povo não os aprova. Mas de qualquer maneira alguém tem que vencer a eleição, ou seja, esse é um protesto sem sentido, inútil, natimorto e totalmente apolítico.

Se a intenção é fazer o candidato entender o que o eleitorado espera dele, é melhor que se leia e se debata política com mais interesse. Não adianta ficar só repetindo o que se diz no Jornal Nacional. Isso não basta. Se politizar é ir além disso. É observar ano após ano as mudanças que a cidade sofre, para o bem e para o mal; é saber aproveitar as brechas e oportunidades e conversar pessoalmente com aquele em que se votou, tirar satisfações, fuçar para saber as quantas anda tal projeto.

Os brasileiros pecam pela mania de se lamentarem, se fazerem de rogados, injustiçados, coitadinhos. Acredito que esse conformismo deva vir desde os tempos da colônia, e o tempo foi passando, a política foi ficando uma coisa cada vez mais hermética, as pessoas foram achando-a cada vez mais ininteligível, o interesse se perdeu, a manipulação ficou mais fácil, o voto virou moeda de troca e o resto da história todos sabemos. O eleitorado é que moldou o típico político corrupto de hoje. O povo, os coitadinhos, são os maiores culpados pela corja que hoje mancha a política.

Hoje se fala em introduzir as disciplinas de Sociologia e Filosofia nas escolas. Antes tarde do que nunca, mas se isso já tivesse sido feito, hoje, provavelmente jovens como esse do “Nulo neles!” tivesse outro discurso. Sócrates, Platão e Aristóteles, além de terem sido os primeiros “cristãos” da História (antes mesmo do nascimento de Cristo), foram também os primeiros a discutir política, a levar as discussões acerca desse assunto para o povo, eles circulavam por entre as pessoas desafiando-as a refletir sobre os métodos de governo e das reais necessidades dos cidadãos. E hoje a necessidade é igual. A política deve circular livremente por entre as pessoas, escolas, associações (mas a Igreja que fique fora disso).

A melhor maneira de protestar e demonstrar descontentamento não é jogando um voto no lixo, mas se interando das coisas que acontecem ou deixam de acontecer.
Não faz muito tempo, assim que foram liberadas as propagandas eleitorais nas ruas, eu estava na fila de uma lotérica e acabei ouvindo a conversa de um moço e de uma senhora. O rapaz, pelo que entendi, era de fora, e ao ver uma dessas kombis com o som alto fazendo propaganda de um candidato, se virou para a senhora e perguntou: “O atual prefeito daqui foi bom para a cidade?”. A resposta da senhorinha foi desanimadora: “Ah, não sei. Eu não entendo nada dessas coisas, não.”.

Eu não estou fazendo campanha desse ou daquele candidato, mas por mais simples que a pessoa seja, não há como “não entender dessas coisas”. Ainda que uma pessoa não conheça os jargões da política, não tenha lido nada sobre Filosofia, mal saiba as siglas dos partidos, ainda assim, tem como avaliar o mandato de um político através das transformações pela qual a cidade passa. Quem tivesse visto a mesma cena até poderia dizer “ah, mas aquela senhora era muito simplesinha, muito pobrezinha...”. Vamos parar com essa mania de ter “dosinha”! Pobreza não é desculpa para o pouco caso.

A família dos meus avós maternos nunca foram ricos, mas sempre se discutiu política dentro de casa. Cresci ouvindo nomes desde Adhemar de Barros, passando por Antônio Hermínio de Moraes, Fernando Collor de Mello, Fernando Henrique Cardoso até chegar a Geraldo Alckmin (isso sem contar os políticos locais). Sempre fomos de acompanhar campanhas, pesquisas e apurações. Dependendo da eleição, essa costumava ser uma atividade muito estimulante. E não estou exagerando, não estou querendo fazer bonito, nem exaltar determinado político. Apenas tentando demonstrar que política não é um monstro, não é chata, não precisa ficar restrita a círculos limitados de discussões, que até pode ser um assunto edificante. Eu sei que ainda existem no Brasil, lugares em que se falar em política resulta em morte, mas no nosso caso, temos o privilégio de podermos conversar sobre isso em qualquer banco de praça, mesa de restaurante, balcões de padocas ou sala de aula.

Também não sou a favor do voto obrigatório e nem estou mais a serviço da Justiça Eleitoral – já fui mesária por quatro vezes e presenciei várias cenas em que o eleitor chegava à frente da urna e ainda não sabia em quem votar. Uma vez, no primeiro turno da eleição para presidente, uma senhora pediu para que eu votasse para ela! Mesário não pode fazer isso, nem em sonho! Mas ela insistiu, “vota aí pra mim, em qualquer um.”. Tive que aconselhá-la, já que ela não tinha a mínima noção de em quem votar, que teclasse qualquer número e confirmasse. Assim que ela saiu, meus colegas de mesa brincaram perguntando se eu tinha teclado o 45. Sinceramente, vontade não me faltou. Quando se é mesário, vemos muitas peças engraçadas, mas também muitas lamentáveis e que nos levam a pensar até onde e quando a ignorância de tanta gente vai continuar. E não digo ignorância para ofender ninguém. Ignorante é aquele que ignora. Nesse caso, estamos pecando pelo ato de ignorar um assunto tão relevante quanto à política e indo pela via mais fácil do “nulo neles”.

Ao contrário do que a maioria pensa, a política não é suja. Nós é que a estamos fazendo assim. Sujo é o nosso descaso, é o conformismo tipicamente brasileiro, a nossa famosa memória curta, é a velha falta de leitura. Tomara que eu possa viver para ver mais famílias e mais rodas de amigos formando pequenas “Acrópoles” e fazendo da política um assunto tão corrente quanto os manjados “mulher, futebol e carro”.
SE LOBATO VIVO ESTIVESSE...


Hoje vi uma reportagem que me deixou um tanto irritada. Abordavam uma série de problemas típicos de uma grande cidade, como São Paulo, e falaram de pessoas que moram em baixo de pontes e viadutos. O repórter se enfiava sob as estruturas para conversar com essas pessoas e mostrar as condições sob as quais elas estavam submetidas. Numa dessas, uma mulher contou que ela perdeu o emprego e com o dinheiro do acerto comprou um barraco numa favela. Mais tarde ela teve que desocupar a favela e foi morar em cima de uma das várias pontes de São Paulo, uma que cruza o rio Tietê bem em frente ao Sambódromo. Não demorou muito, a prefeitura deu-lhe dois mil reais para que ela saísse dali (já que sua imagem estava degradando os arredores do Sambódromo, às portas do carnaval). Então ela foi morar em baixo da mesma ponte. Está lá desde o carnaval, usando pedaços de tapume como paredes, convivendo com o mau cheiro do rio, com o barulho infernal do trânsito, sujeita a todo tipo de doenças, violências e infortúnios.


O que me irritou não foi exatamente essa situação – coisa com a qual já estamos tão habituados que nos sentimos praticamente anestesiados – mas com a reposta que ela deu ao repórter quando ele lhe perguntou o que ela havia feito com os dois mil reais: “Ah, eu comprei um fogão, botijão de gás, mais umas coisinhas e um celular pra minha filha.”. Dois mil reais é uma quantia ridícula, realmente, mas mais ridículo ainda é um ser humano que, visivelmente, carece de bens mais urgentes e essenciais, comprar um celular! Pensei, inutilmente pensei e não achei uma explicação para isso. O que leva uma pessoa desprovida de casa, roupas, remédios e comida a comprar um telefone celular? Daí me veio à mente pensamentos aparentemente maldosos de alguns filósofos que li que dizem que há pessoas que vieram a esse mundo para serem pobres mesmo – e por vezes, merecidamente, pois essa é a lei da natureza e só se destaca e prospera aquele que souber usar de seu intelecto para administrar com sabedoria aquilo que tem, ainda que seja o mínimo; que a pobreza é uma forma de castigo proveniente da indolência, ignorância e falta de vontade. Essa é uma visão muito cruel, teimo em não concordar com ela, alguns pensadores eram de fato muito amargos, mas em momentos como esse, depois de ver essa mulher sobrevivendo sob uma ponte declarar que gastou parte do pouco que tinha com um aparelho celular, é inevitável que nos perguntemos até onde vai esse consumismo imbecil, irracional, impulsivo (e repulsivo) e desenfreado?


Se Monteiro Lobato estivesse vivo, ele morreria de desgosto. Essa seria uma visão que bateria de frente com aquilo que ele sonhava para a nossa sociedade. Em 1935, Lobato traduziu, fez o prefácio e teceu comentários ao final de cada capítulo do livro “A História da Filosofia – a vida e as idéias dos grandes filósofos”, do norte-americano Will Durant. Logo no final do livro (de quase 550 páginas, mas de uma leitura deliciosa), Lobato analisa as teorias de George Santayana, Williams James e John Dewey (ambos do final dos anos de 1800). Esses pensadores norte-americanos (exceto Santayana que era hispano-americano) diziam basicamente que a América, apesar de ainda muito nova, deveria desenvolver logo sua própria forma de pensamento, não calcada somente em coisas referentes a planos subjetivos, mas incorporando seu pensamento à nova realidade do seu povo, às modernidades que estavam surgindo, aos embates entre literatura e ciência.


Não somente os Estados Unidos estavam a todo vapor em termos de desenvolvimento e produção acelerada de bens de consumo, mas toda a América já se encontrava em polvorosa. Da noite para o dia, muitas pessoas passaram a acumular riquezas, os mercados cresciam vertiginosamente, a ciência estava cada vez mais em evidência, as pessoas desejavam a evolução a qualquer custo. Então, esses três homens deram o ponta-pé inicial à filosofia em nosso continente – trazendo na bagagem algumas referências importantes dos filósofos europeus como Darwin, Kant e Schopernhauer. Eles tinham a esperança de que, em meio a esse turbilhão de novidades, se começassem a disseminar o apreço pela cultura e pelo aprimoramento do povo, fazer da Filosofia uma ferramenta “para esclarecer as idéias dos homens quanto aos problemas morais e sociais do momento (...) tornar-se, no humanamente possível, um órgão para enfrentar esses problemas e solver os seus conflitos”.


Santayana, James e Dewey já notavam e temiam que essa nova mentalidade de consumo do povo americano pudesse pôr em perigo o nascimento da filosofia em nosso continente, que pudesse estragar as mentes ainda jovens dessa sociedade – pessoas que, ainda confusas, eram comparadas a adolescentes em plena puberdade.


Lobato transfere esse cenário para a nossa gente, que também não conhecia uma filosofia própria. Ele dizia que não deveríamos desanimar ante nossas superficialidades, éramos “verdes” demais. Afinal, o que era a Inglaterra mil anos antes de Shakespeare? Ou a França antes de Montaigne? Mais cedo ou mais tarde, iríamos despertar nossas mentes e nossas almas (se bem que alguns filósofos nem acreditam na existência da alma).


Porém acabamos por adotar uma posição aquisitiva e individualista ao invés de desenvolvermos uma alma contemplativa, artística e tolerante. Contudo, Lobato ainda acreditava que o acúmulo de bens podia resultar na aquisição de cultura: “Mas tornamo-nos ricos e a riqueza é um prelúdio da arte. Em cada país onde séculos de esforço acumularam meios para o luxo e o ócio, a cultura apareceu naturalmente, como vegetação que brota da terra adubada e úmida”.


Será que Lobato era realmente tão otimista, tão inocente ou tão crente na força de vontade de um povo que já nasceu consumista? Se até os índios foram engambelados pelos portugueses com presentinhos como espelhos e outras bugigangas, por que as pessoas contemporâneas dele seriam diferentes? E de lá pra cá, quase nada parece ter mudado. Riqueza ainda não é sinônimo de cultura. Muitos dos “novos ricos” que vemos são cafonas e se comportam de modo patético, passando longe de qualquer indício de cultura ou aprimoramento espiritual e intelectual. Compram arte aleatoriamente sem saber o que estão adquirindo, pelo simples prazer do exibicionismo e não da contemplação, e o acúmulo de bens só tem feito aparecer uma nova geração de jovens totalmente inversos à realidade (vide alguns “boyzinhos” que ainda circulam na cidade que têm sempre na ponta da língua frases como “você sabe com quem está falando?”).


Infelizmente, parece que as “previsões” de Lobato ainda estão longe de se concretizar: “... um povo tem que enriquecer, se quer filosofar. Sem dúvida que crescemos mais depressa que o usual entre as nações; e a desordem das nossas almas é devida à rapidez do nosso desenvolvimento... Mas nossa maturidade virá logo; nosso espírito se emparelhará com o nosso corpo e a nossa cultura com nossas riquezas. Talvez que almas maiores do que a de Shakespeare, e mentalidades maiores que a de Platão estejam esperando para nascer. Quando aprendermos a reverenciar a liberdade tanto quanto reverenciamos a riqueza, então veremos na nossa Renascença”.


Ler o que Monteiro Lobato escreveu um 1935 e ver, hoje, uma pessoa miserável que tira comida da boca para dar um celular para uma filha maior e desocupada, nos faz ver que de lá para cá praticamente não houve essa quase utópica evolução espiritual almejada pelos filósofos. Ultimamente tenho andando muito pessimista em relação ao rumo que tudo isso vem tomado, mas espero de verdade que outros Shakespeares, Platões e Lobatos surjam. Mas até isso acontecer, seguimos vivendo nossa Idade Média – e não por opressão por parte de governantes ou da Igreja, mas por vontade própria, o que também é infinitamente irritante.