terça-feira, 23 de setembro de 2008

SE LOBATO VIVO ESTIVESSE...


Hoje vi uma reportagem que me deixou um tanto irritada. Abordavam uma série de problemas típicos de uma grande cidade, como São Paulo, e falaram de pessoas que moram em baixo de pontes e viadutos. O repórter se enfiava sob as estruturas para conversar com essas pessoas e mostrar as condições sob as quais elas estavam submetidas. Numa dessas, uma mulher contou que ela perdeu o emprego e com o dinheiro do acerto comprou um barraco numa favela. Mais tarde ela teve que desocupar a favela e foi morar em cima de uma das várias pontes de São Paulo, uma que cruza o rio Tietê bem em frente ao Sambódromo. Não demorou muito, a prefeitura deu-lhe dois mil reais para que ela saísse dali (já que sua imagem estava degradando os arredores do Sambódromo, às portas do carnaval). Então ela foi morar em baixo da mesma ponte. Está lá desde o carnaval, usando pedaços de tapume como paredes, convivendo com o mau cheiro do rio, com o barulho infernal do trânsito, sujeita a todo tipo de doenças, violências e infortúnios.


O que me irritou não foi exatamente essa situação – coisa com a qual já estamos tão habituados que nos sentimos praticamente anestesiados – mas com a reposta que ela deu ao repórter quando ele lhe perguntou o que ela havia feito com os dois mil reais: “Ah, eu comprei um fogão, botijão de gás, mais umas coisinhas e um celular pra minha filha.”. Dois mil reais é uma quantia ridícula, realmente, mas mais ridículo ainda é um ser humano que, visivelmente, carece de bens mais urgentes e essenciais, comprar um celular! Pensei, inutilmente pensei e não achei uma explicação para isso. O que leva uma pessoa desprovida de casa, roupas, remédios e comida a comprar um telefone celular? Daí me veio à mente pensamentos aparentemente maldosos de alguns filósofos que li que dizem que há pessoas que vieram a esse mundo para serem pobres mesmo – e por vezes, merecidamente, pois essa é a lei da natureza e só se destaca e prospera aquele que souber usar de seu intelecto para administrar com sabedoria aquilo que tem, ainda que seja o mínimo; que a pobreza é uma forma de castigo proveniente da indolência, ignorância e falta de vontade. Essa é uma visão muito cruel, teimo em não concordar com ela, alguns pensadores eram de fato muito amargos, mas em momentos como esse, depois de ver essa mulher sobrevivendo sob uma ponte declarar que gastou parte do pouco que tinha com um aparelho celular, é inevitável que nos perguntemos até onde vai esse consumismo imbecil, irracional, impulsivo (e repulsivo) e desenfreado?


Se Monteiro Lobato estivesse vivo, ele morreria de desgosto. Essa seria uma visão que bateria de frente com aquilo que ele sonhava para a nossa sociedade. Em 1935, Lobato traduziu, fez o prefácio e teceu comentários ao final de cada capítulo do livro “A História da Filosofia – a vida e as idéias dos grandes filósofos”, do norte-americano Will Durant. Logo no final do livro (de quase 550 páginas, mas de uma leitura deliciosa), Lobato analisa as teorias de George Santayana, Williams James e John Dewey (ambos do final dos anos de 1800). Esses pensadores norte-americanos (exceto Santayana que era hispano-americano) diziam basicamente que a América, apesar de ainda muito nova, deveria desenvolver logo sua própria forma de pensamento, não calcada somente em coisas referentes a planos subjetivos, mas incorporando seu pensamento à nova realidade do seu povo, às modernidades que estavam surgindo, aos embates entre literatura e ciência.


Não somente os Estados Unidos estavam a todo vapor em termos de desenvolvimento e produção acelerada de bens de consumo, mas toda a América já se encontrava em polvorosa. Da noite para o dia, muitas pessoas passaram a acumular riquezas, os mercados cresciam vertiginosamente, a ciência estava cada vez mais em evidência, as pessoas desejavam a evolução a qualquer custo. Então, esses três homens deram o ponta-pé inicial à filosofia em nosso continente – trazendo na bagagem algumas referências importantes dos filósofos europeus como Darwin, Kant e Schopernhauer. Eles tinham a esperança de que, em meio a esse turbilhão de novidades, se começassem a disseminar o apreço pela cultura e pelo aprimoramento do povo, fazer da Filosofia uma ferramenta “para esclarecer as idéias dos homens quanto aos problemas morais e sociais do momento (...) tornar-se, no humanamente possível, um órgão para enfrentar esses problemas e solver os seus conflitos”.


Santayana, James e Dewey já notavam e temiam que essa nova mentalidade de consumo do povo americano pudesse pôr em perigo o nascimento da filosofia em nosso continente, que pudesse estragar as mentes ainda jovens dessa sociedade – pessoas que, ainda confusas, eram comparadas a adolescentes em plena puberdade.


Lobato transfere esse cenário para a nossa gente, que também não conhecia uma filosofia própria. Ele dizia que não deveríamos desanimar ante nossas superficialidades, éramos “verdes” demais. Afinal, o que era a Inglaterra mil anos antes de Shakespeare? Ou a França antes de Montaigne? Mais cedo ou mais tarde, iríamos despertar nossas mentes e nossas almas (se bem que alguns filósofos nem acreditam na existência da alma).


Porém acabamos por adotar uma posição aquisitiva e individualista ao invés de desenvolvermos uma alma contemplativa, artística e tolerante. Contudo, Lobato ainda acreditava que o acúmulo de bens podia resultar na aquisição de cultura: “Mas tornamo-nos ricos e a riqueza é um prelúdio da arte. Em cada país onde séculos de esforço acumularam meios para o luxo e o ócio, a cultura apareceu naturalmente, como vegetação que brota da terra adubada e úmida”.


Será que Lobato era realmente tão otimista, tão inocente ou tão crente na força de vontade de um povo que já nasceu consumista? Se até os índios foram engambelados pelos portugueses com presentinhos como espelhos e outras bugigangas, por que as pessoas contemporâneas dele seriam diferentes? E de lá pra cá, quase nada parece ter mudado. Riqueza ainda não é sinônimo de cultura. Muitos dos “novos ricos” que vemos são cafonas e se comportam de modo patético, passando longe de qualquer indício de cultura ou aprimoramento espiritual e intelectual. Compram arte aleatoriamente sem saber o que estão adquirindo, pelo simples prazer do exibicionismo e não da contemplação, e o acúmulo de bens só tem feito aparecer uma nova geração de jovens totalmente inversos à realidade (vide alguns “boyzinhos” que ainda circulam na cidade que têm sempre na ponta da língua frases como “você sabe com quem está falando?”).


Infelizmente, parece que as “previsões” de Lobato ainda estão longe de se concretizar: “... um povo tem que enriquecer, se quer filosofar. Sem dúvida que crescemos mais depressa que o usual entre as nações; e a desordem das nossas almas é devida à rapidez do nosso desenvolvimento... Mas nossa maturidade virá logo; nosso espírito se emparelhará com o nosso corpo e a nossa cultura com nossas riquezas. Talvez que almas maiores do que a de Shakespeare, e mentalidades maiores que a de Platão estejam esperando para nascer. Quando aprendermos a reverenciar a liberdade tanto quanto reverenciamos a riqueza, então veremos na nossa Renascença”.


Ler o que Monteiro Lobato escreveu um 1935 e ver, hoje, uma pessoa miserável que tira comida da boca para dar um celular para uma filha maior e desocupada, nos faz ver que de lá para cá praticamente não houve essa quase utópica evolução espiritual almejada pelos filósofos. Ultimamente tenho andando muito pessimista em relação ao rumo que tudo isso vem tomado, mas espero de verdade que outros Shakespeares, Platões e Lobatos surjam. Mas até isso acontecer, seguimos vivendo nossa Idade Média – e não por opressão por parte de governantes ou da Igreja, mas por vontade própria, o que também é infinitamente irritante.

2 comentários:

Anônimo disse...

Querida... O consumismo que j� lan�ava brotos quando o corpo de Monteiro e Dewey viviam, � o ponto chave (pelo qual ali�s come�aste) em fun�o de que os dois (e outros pensadores) entendiam na EDUCA��O a �nica energia capaz de construir um povo. Lembra? "Com livros se faz um povo"...
Gostei do Teu Enfoque. Se quiseres, temos muitas id�ias a trocar. beij�o
bettysanson@bol.com.br

Incendeia - me a vida disse...

Olá Veri's
O que posso dizer sobre tudo isso é que:

A MAIORIA DAS PESSOAS QUEREM TER
MAS NINGUÉM QUER SER!


Lamentável!!!!!!!!!