quinta-feira, 10 de dezembro de 2009

A colheita maldita

A COLHEITA MALDITA


Antes que eu fique com algum bloqueio mental por causa desse jogo, vou logo escrever o texto que alguns amigos meus me recomendaram e pediram. Na verdade o jogo em questão não se chama Colheita Maldita, mas Colheita Feliz (a versão brasileira do Happy Harvest). O “Maldita” é por minha conta, pois o que parece ser um inocente joguinho on line, na verdade é um terrível vício que desperta o que há de pior no ser humano: ganância, inveja, ostentação.
Para aqueles que ainda não conhecem o Colheita Feliz, em resumo se trata de uma brincadeirinha do Orkut, falsamente inofensiva, onde as pessoas mantém suas fazendinhas plantando, colhendo e criando animais – e ganhando algum dinheiro com isso. Dinheiro de mentirinha, claro. Só mesmo o Silvio Santos e o Lula para darem dinheiro à toa. O visual do jogo é bonitinho, quase infantilizado; as vaquinhas, ovelhinhas, galinhas, burrinhos e porquinhos são todos “fofinhos”. As plantinhas não fazem muito sentido, pois um pé de morango tem o mesmo tamanho de um pé de manga, mas tudo bem, o que interessa é a emoção do jogo. E não exagero quando uso a palavra “emoção”, pois como eu disse, esse passatempo tão inocente é capaz de nos transformar em verdadeiros Mr. Hyde. Para começar, ganhamos dinheiro roubando nossos amigos. Ficamos à espreita em suas hortas para colher os frutos maduros e os produtos dos animais e depois vendemos as mercadorias furtadas. Mas sempre tomando cuidado para não sermos nós os roubados. Roubar pode. Ser roubado, não! Aí começa o mais fiel retrato da vida real: tornamos-nos egoístas e trapaceiros.
Depois vem a raiva por termos sido furtados, a frustração por não termos tomado a devida conta de nossas plantas e bichos. Resulta daí que passamos a ver nossos amigos como rivais e traíras em potencial. No mundo real chamamos isso de competir de forma desleal. Em seguida vem a opção de infestarmos de pragas as hortas “inimigas”. Vingança, claro. Ele vem e me rouba, se eu não posso roubá-lo, então vou prejudicá-lo. Inveja. Rancor. Sadismo.
Ainda podemos regar e limpar as plantações, usando pesticidas para matar as tiriricas e os vermes. Mas não fazemos isso porque somos bonzinhos, mas sim porque também rende algum trocado. Ou seja: não existe nenhuma boa ação desinteressada.
Quando eu entrei nesse jogo, eu imaginava que isso era coisa de criancinha. Mas a Colheita Feliz é a mais cínica tradução da máxima que diz que “o homem é o lobo do homem”. Dramas à parte, quem joga, comece a reparar nisso: você já teve inveja da plantação de algum amigo, cheia de pêssegos, limões, uvas, kiwis, pitayas e flores que você nunca conseguiu? Enquanto ele planta coisas caras e exóticas você ainda está no estágio daqueles reles nabos e cenourinhas. Você já se pegou cobiçando o curral alheio cheio de animaizinhos lindinhos que produzem uma pancada de leite, ovos, lã e mel? Enquanto isso o seu terreno está tão vazio que se o jogo tivesse som, você só teria o som do silêncio. Você já se pegou meio desbundado quando viu os cenários bacanas dos outros, com paisagens diferentes e casinhas estilosas? Ao passo que você demorou uma vida em juntar grana e se mudar daquela casa sem-graça e trocar aquele jardim zoado. Ambição total. Humildade zero.
Para quem não joga a Colheita Maldita acha que isso é puro devaneio meu, mas tenho certeza que alguma idéia assim já deve ter incomodado algum “fazendeiro”. É natural, o sentimento de competitividade é inerente no ser humano. E tem sido assim cada dia na vida, seja em algo sério como brigar por uma vaga de trabalho ou em algo mais ameno como uma pelada de fim de semana e até numa bobeira como essa Colheita Feliz.
O que eu quis mostrar com esse texto é que até mesmo nas menores coisas, diante da “ameaça do outro” e da competição, nossos instintos mais primitivos afloram. Talvez um psicólogo ou um antropólogo explique bem melhor esse fenômeno de pessoas trancadas em seus mundinhos, se roubando entre si, cobiçando, querendo que o outro se dane, ainda que esse “se dane” não seja um desejo do fundo do coração. Mas é engraçado ver que até numa brincadeirinha assim, quem pratica ilegalidades é quem mais se dá bem. Semelhança total com o mundo exterior.
Semelhança maior ainda eu senti quando, dia desses, eu invadi um laranjal alheio e não senti um pingo de culpa. Invasão em laranjal sem culpa... Já vi isso em algum lugar.