terça-feira, 29 de abril de 2008



A ADVOGADA DO TROVADOR



Quem é, entre dez, o quinto pior letrista do mundo da música? Renato Russo. Pelo menos é o que dizem as mentes brilhantes da MTV.
No programa TOP TOP (que sempre elege os dez mais ou os dez menos da música, cada semana com um tema diferente), o nosso saudoso trovador solitário apareceu nessa lista, quando nesse caso nem deveria ter sido lembrado. Vou fazer as vezes de advogada de Renato Russo (se bem que ele nem precisa, suas obras por si só já são uma boa resposta) primeiro como fã incondicional, e depois porque achei isso realmente uma injustiça.



Muitos consideram as letras do líder da Legião Urbana chatas, enfadonhas, tristes e até ininteligíveis. Até aí, tudo bem, dá pra engolir. Mas acusa-lo de escrever letras de baixa qualidade é o mesmo que assinar atestado de ignorância. Mas o que se podia esperar da ainda americanizadíssima MTV Brasil? Eles juram que buscam fazer uma programação cada vez mais brasileira, mas continuam pichando muitos de nossos artistas. E Renato Russo foi um dos mais influentes. Eu sei que é mais do mesmo dizer isso, mas ele praticamente “hipnotizou” (no bom sentido) uma geração toda. E me incluo nisso. A trilha sonora de minha adolescência foi basicamente toda feita de Legião Urbana. E qual fã de Renato nunca teve a sensação de que, quando ele compunha e interpretava suas letras, ele estava falando diretamente com cada um e sobre cada um de nós?



Renato sabia exatamente como tocar a alma dos jovens, sabia falar o que nós gostaríamos de ter falado – e não era de qualquer jeito, buscando uma rima a qualquer custo ou enchendo lingüiça com intermináveis refrões. Ele representava nossos pensamentos com poesia, com classe, com sarcasmo, com dor, com raiva, com um rancor incontido, com leveza, com carinho. Ele escreveu tudo o que eu adoraria ter escrito. Cada um de suas letras retrata com perfeição as mais diversas situações pelas quais cada um de nós passou ou ainda está por passar.



Renato tinha o dom de falar de dor e desespero (seus e dos outros) sem apelações. Eis alguns exemplos. Em Canção do Senhor da Guerra, ele descreve as barbaridades de um conflito sem sentido dessa forma: “Existe alguém esperando por você / que vai comprar a sua juventude e convence-lo a vencer (...) Uma guerra sempre avança a tecnologia / mesmo sendo guerra santa, quente, morna ou fria / Pra que exportar comida? / Se as armas dão mais lucros na exportação (...) E quando longe de casa, ferido e com frio / o inimigo você espera / Ele estará com outros velhos / inventando novos jogos de guerra / e belíssimas cenas de destruição / não teremos mais problemas com a superpopulação (...) O senhor da guerra não gosta de crianças ...”. E enquanto isso, os artistas pop que tanto a nossa MTV badala, se mostram contra as guerras dizendo simplesmente que elas são uma m..., repetindo o que todo mundo fala.



Quando vim para São Paulo e dei de cara com essa paisagem tão discrepante da minha cidade natal, logo me lembrei de uma outra obra de Renato, Música Urbana 2, que com sua levada de blues, exprime com exatidão as cenas típicas de uma metrópole, seja ela qual for: “Em cima dos telhados, as antenas de TV tocam música urbana / Nas ruas os mendigos com esparadrapos podres cantam música urbana (...) O vento forte, seco e sujo em cantos de concreto parece música urbana / E a matilha de crianças sujas no meio da rua / Música urbana (...) Os uniformes, os cartazes, cinema e os lares, favelas, coberturas, quase todos os lugares / E mais uma criança nasceu / Não há mentiras nem verdades aqui / Só há música urbana”.



Matilha de crianças. Isso parece muito cruel? Mas que outra palavra, que outro substantivo de coletividade retrataria tão bem a situação das crianças marginalizadas das grandes cidades? Pode parecer maluquice, mas penso que Renato Russo chega a dar cor às letras, e essa, definitivamente é cinza. Assim como sinto um profundo azul-escuro (com o perdão do trocadilho) quando ouço Baader-Meinhof Blues, onde ele lembra de como todo o mundo se tornou insensível diante das brutalidades, das mazelas e das tristezas alheias, de como nos fechamos dentro do nosso mundo-apartamento e que as loucuras que acontecem lá fora não nos dizem respeito, até que elas batam à nossa porta: “A violência é tão fascinante e nossas vidas são tão normais / E você passa dia e noite e sempre vê apartamentos acesos / Tudo parece ser tão real / Mas você viu esse filme também (...) Essa justiça desafinada é tão humana e tão errada / Nós assistimos televisão também / Qual é a diferença? (...) Todo mundo sabe, ninguém quer mais saber / Afinal amar o próximo é tão démodé”.



Mas para que não digam que Renato escrevia só sobre tragédias e o lado omisso das pessoas, ele também descrevia as relações de amor, com maestria. E eu tenho certeza de que muitos jovens da minha geração que ouviam Legião Urbana já escreveram ou pensaram em escrever alguma cartinha de amor com alguns trechos de suas letras. Acho impossível que nenhum adolescente dos anos 80 e 90 não tenha se apaixonado, desapaixonado, sentido a dor da saudade, do ciúme do de um fora ou a alegria de ser correspondido, ao som de músicas tão suaves como Giz: “...desenho toda a calçada / acaba o giz, tem tijolo de construção / Eu rabisco o sol que a chuva apagou / Quero que saibas que me lembro / Queria até que pudesses me ver / És parte ainda do que me faz forte / E pra ser honesto só um pouquinho infeliz...”.



Nesse pedaço, Renato faz uso de uma doce metáfora para dizer que muitas vezes ninguém é insubstituível e que sempre haverá alguma outra pessoa por surgir em nossas vidas que pode – ao menos tentar – nos fazer sarar de desilusões passadas. Pelo menos foi isso o que captei. Aliás, uma das qualidades das letras de Russo é nos dar a chance de viajar nas várias possibilidades de interpretação, é a liberdade que ele nos dá de escolhermos a “moral de história”, essa é a magia da subjetividade, um dom que somente letristas de verdade possuem.



E uma das letras que mais gosto (apesar de que é uma missão impossível decidir qual é a melhor) é de Maurício, que expressa todas as dúvidas, medos e desejos de um amor inconstante e rancoroso: “Já não sei dizer se ainda sei sentir / O meu coração já não me pertence / Já não quer mais me obedecer / Parece agora estar tão cansado quanto eu / Até pensei que era mais / Por não saber que ainda sou capaz de acreditar / Me sinto tão só / E dizem que a solidão é que me cai bem...”.



Acho que devo encerrar minha defesa por aqui. Na verdade Renato Russo nunca precisou de quem o defendesse, na qualidade de artista. Assim como tantos outros, eu não passo de uma admiradora eterna do legado que ele nos deixou, então, mais que uma defesa, eu deixo aqui meu protesto. E nesse tribunal, não cabe a nenhum de nós julgar os méritos ou as faltas de Renato. Apenas lamentar que letristas como ele sejam motivo de chacota e que boa parte da juventude de nosso país cresça resumindo sentimentos como o amor em uma única palavra: créu.

2 comentários:

Anônimo disse...

Não sei realmente qual parte de suas palavras me encantam mais, creio que em sua totalidade, pois concordo com cada "vírgula" escrita. Legião Urbana e Renato Russo sempre foram um grande marco em minha vida, e agora simbolizam algo muito mais especial ao meu ver.

Assim que puder, estarei lendo todos os textos anteriores, mas aos poucos consigo, afinal, que leitor não gosta de bons textos não acha?

Mal posso esperar para te ver...

Beijos Gui~

Anônimo disse...

Parabéns pelo texto! Não assisto a MTV (nem faço questão), agora fiquei curiosa para saber quais foram os escolhidos como melhores letristas, tenho até medo...